A Arquidiocese de Natal está vivendo um tempo de graça, com a celebração do seu primeiro Sínodo arquidiocesano. Uma única linguagem perpassa o quotidiano das comunidades eclesiais que a compõem. Os sujeitos eclesiais estão tendo a oportunidade de dizer com liberdade o que é que a própria Igreja diz sobre ela mesma. O amplo processo de escuta está sendo oportunizado aos demais agentes sociais; pois a Igreja está no mundo e é chamada a dialogar com todos; ser hospital de campanha para todos e ter as suas portas abertas a todos. Urge que aproveitemos esta oportunidade para elaborarmos um projeto missionário e pastoral que nos lance a um ousado e maturado desejo de anunciar o Evangelho. Esse anúncio, por sua vez, tem consequências espirituais que, plenamente humanas, nos colocam em relação com o projeto salvífico de Deus e a realização plena de cada criatura. A ação evangelizadora da Igreja deve ser integral e integradora da dignidade humana, com suas manifestações e efetivação da sua subjetividade.
O Papa Paulo VI afirmava que “entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento, libertação, existem de fato laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar "que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo” (cf. EN, 31). A Igreja Particular de Natal tem uma trajetória de compromisso social que não pode cair no esquecimento. Negar esse profícuo dinamismo é trair um passado marcado por sinais reluzentes e credíveis junto ao povo fiel de Deus, que conhece e é testemunha primorosa do que já tivemos a graça de capitanear em tempos de outrora.
A Igreja tem paradigmas fundamentados na sagrada escritura, na sua tradição viva e no seu magistério para pensar e propor ações aos cristãos e demais homens e mulheres de boa vontade. A sua Doutrina Social é o conjunto de proposições éticas que legitimam as pessoas para às quais ela comunica o seus ensinamentos a assumirem o seu papel de agente de transformação das situações e estruturas que renegam os valores do Reino de Deus. Há um Evangelho Social que não deveria ser ignorado pelo povo de Deus. Na Doutrina Social há a tradução dos princípios evangélicos que precisam ser aplicados às realidades sociais; principalmente onde há a sonegação da justiça e da paz. O Papa Bento XVI afirmava que “a esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a Doutrina Social da Igreja. Tal doutrina é ‘caritas in veritate in re sociali’, ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos e morais.
O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconómicos que afligem a humanidade precisam desta verdade”. Continua Bento com a conceituação do que é a Doutrina Social da Igreja, apresentando a “’Caritas in veritate’ é um princípio à volta do qual gira a Doutrina Social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da ação moral. Destes, desejo lembrar dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum” (cf. CV, 5.6). O Pontífice com profundidade teológica nos ensinou que a “caridade e a verdade - com acréscimo meu - são as linhas mestras da doutrina social da Igreja (cf. CV, 2).
A dimensão social da ação missionária não pode relegar as suas possibilidades evangélicas à introspeção eclesiástica. Esse encurvamento sobre si mesma não ajuda no êxito prospetado pela Doutrina Social. Esta nos coloca em situação de fronteiras e de inserção no mundo. Francisco também nos ensina que “’os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano.
Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas ‘para nosso usufruto’ (1 Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever ‘especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum’” (cf. EG, 149). Há uma linha de transmissão do magistério social dos pontífices, desde a Rerum Novarum (cf. Leão XIII até Leão XIV). A doutrina social é deveras uma ferramenta insubstituível às Igrejas Locais para que a sua voz possa ser propositiva, dialógica e profética.
Neste cenário, ocupa um lugar teológico de base “a opção preferencial pelos miseráveis da história e da sociedade”. Podemos colocá-la como questão transversal de todo ensinamento social da Igreja. Com o Papa Francisco foi elevada a responsabilidade que todos somos chamar a ter em relação aos indigentes e abandonados. Ele instituiu o “Dia Mundial do Pobre”, não para enfatizar a pobreza, mas por reconhecimento da dignidade de cada filho de Deus, que na sua condição ultrajada, devido as estruturas de pecado, criadas por nós, encontra-se em situação de sofrimento e injustiça social. Citando São João Crisóstomo ele asseverava que “o Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis. Continuam a ressoar de grande atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: ‘Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez” (cf. Hom. in Matthaeum, 50, 3: PG 58). No pontificado de Francisco, os pobres de fato não foram esquecidos, como fora solicitado pelo Cardeal Hummes e ele - Francisco -, por sua vez, solicitava: “Quero uma Igreja pobre e para os pobres”.
Tendo em vista estas considerações, em espírito sinodal, com plena consciência da nossa missão no mundo de hoje e em nossa realidade especificamente, como seria importante que, a partir dos ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, fosse constituída em nossa Igreja Particular de Natal uma “Comissão de Justiça, Paz e Cuidado com a Casa Comum”! Sonhemos com isto! Aqui, utopia e esperança necessitam de um abraço. A utopia não tem ainda lugar, enquanto que a esperança já tem o seu objeto garantido pela fé. Neste sentido, a esperança cristã vai além da utopia. Por isso, podemos colocá-las em situação de complementaridade e adequação política e teológica. Essa estrutura eclesial teria a grande tarefa de aplicar os princípios da Doutrina Social da Igreja às nossas realidades pastorais, sociais e econômicas. Teria que ser uma ‘Equipe de Peritos’ das diversas áreas: Juristas, teólogos, filósofos, assistentes sociais, psicólogos etc. Se queremos que o nosso Sínodo nos ajude aprimorar os nossos canais de evangelização e de promoção humana integral, temos que dar passos qualitativos e quantitativos também nesta direção. Essa Comissão teria que ser de “Justiça, Paz e Cuidado com a Casa Comum”, em acolhida ao que nos é indicado com a ideia e proposta da “Ecologia Integral” (cf. LS, cap. IV).
Por fim, vale a continua atenção à explanação em nossas comunidades sobre o significado do Sínodo. A Igreja de Natal tem uma oportunidade de repensarmos as nossas condições eclesiais e como estão os nossos métodos de ação, principalmente no que concerne ao processo de escuta. O Sínodo é para todos. Não é só para os fiéis leigos. O Papa Francisco nos deixou um legado que caiu na mentalidade coletiva e social. O mundo passará a exigir mais da Igreja, depois de Francisco. A força do Evangelho aplicado à realidade social não pode mais ser renegado. As mentalidades principescas e alienadas da história passaram a ser utópicas. Uma Comissão Arquidiocesana de Justiça, Paz e Cuidado com a Casa Comum poderia ser um canal interessante da nossa Igreja Local para o diálogo com os dramas da sociedade e luta à superação das injustiças sociais. Isso seria profético. O Sínodo arquidiocesano é chamado a nos oferecer algo novo e via à aplicação do tesouro da nossa Doutrina Social da Igreja.
Assim o seja!