quarta-feira, 30 de julho de 2025

Padre e Pai: uma psicologia (Pe. Matias Soares)


O Papa Francisco, em muitas circunstâncias, tratou do papel da mulher na Igreja, tendo por referência a teologia do teólogo suiço Urs von Balthasar. Para este pensador da ciência sobre Deus e a sua revelação existe um primado mariano na Igreja, que a condiciona como feminina. A Igreja é mãe. O Papa Francisco falando à Comissão Teológica Internacional convictamente afirmava que “se não soubermos o que é a teologia da mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja”. Ainda provocou o Pontífice: “Se não entendermos o que é uma mulher, o que é a teologia de uma mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja. Um dos grandes pecados que cometemos foi ‘masculinizar’ a Igreja”. Eu sempre refleti sobre o sentido desta tenacidade teológica do grande Papa da pastoralidade missionária. Ele sempre foi avançado no estilo do exercício do ministério petrino. 

Em sintonia com São Paulo II, dizia que havia a necessidade da “conversão do papado”. Assumiu com os seus ensinamentos e, antes de tudo, com os seus gestos e atitudes, as inovações propostas pelo Concílio Vaticano II. Mas, neste ponto discursivo, sempre foi questionado pelos progressistas sobre suas colocações quanto ao papel da mulher na Igreja. Neste mesmo pronunciamento à Comissão, ele retoma claramente as suas bases eclesiológicas balthasarianas sobre dois princípios: “eles estão lá. É mais importante o mariano do que o petrino, porque há a Igreja como noiva, a Igreja como mulher, sem se tornar masculina", observou Francisco. Há o reconhecimento do feminino como categoria existencial e diálógica, sem voltar-se ao feminismo como corrente ideológica.

Refletindo sobre essa concepção permanente e, sem dúvida, amadurecida de Francisco, cheguei ao entendimento de que mais do que uma questão de idéias teológicas, havia um pressuposto existencial e radicalmente antropológico. Francisco em outro contexto também afirmou que a mulher “harmoniza o ambiente”. Essas intuições sinalizam um modo personalíssimo de contemplar a Mulher na sua verdade. Ele a percebia de fato como o Outro que completa o homem. Ele a via como o diferente que, enquanto pessoa, ainda também marcado pelo personalismo de Romano Guardini, é necessária à nossa personalidade, à nossa constituição subjetiva e social. A negação do outro, às vezes, pela própria violência fisica e simbólica, não tinha presença na antropologia bergogliana. 

A polaridade, ainda com Guardini, não é sinonimo de polarização ideológica, como estamos percebendo no ordenamento social dos nossos dias. Francisco de modo sistemático nos mostrou que a humanidade com seus sinais de sombras e fechamentos ao diferente, precisa viver e dar testemunho de diálogo e amizade social (cf. FT, cap. I e VI). Como os horizontes ideológicos, em muitas situações, sufocam os métodos também eclesiais, fazendo com que as rinhas pelo poder sejam mais favorecidas do que a conversão ao Evangelho, que nos qualifica para a autenticidade da existência cristã, ainda estamos um pouco longe de alcançar as percepções do estilo pastoral que nos deixou o Papa Francisco. A sua aguda análise da condição humana ainda nos renderá muitos desenvolvimentos, que só a partir da lógica evangélica poderemos inteligir.

A constituição e reconhecimento da psicologia do Padre, como uma necessária e indissociável consequência daquele que tem uma estrutura antropológica tendente à psicologia de Pai é algo a ser enfrentado pela Igreja no contemporâneo. Contudo, teríamos que fazer uma análise consistente e bem honesta sobre algumas situações históricas, epistemológicas e existenciais com as quais a própria Instituição, mais cedo, ou mais tarde, terá que se deparar. No dado histórico e cultural, temos que encetar as nossas pesquisas sobre o modo com o qual a civilização ocidental, marcada pelos fundamentos grego - razão, judaico - fé e romano - direito (cf. Lima Vaz), demarcou o seu tratamento para com a mulher: nas três culturas, a mesma sempre teve um papel de subserviência e ofuscamento diante dos homens. 

Até os nossos dias, ainda temos as sequelas estruturais e de gênero que nos colocam em situação de perplexidades e desafios. Na questão epistemológica, o olhar da supremacia do mundo das ideias, em detrimento do corpo, como um simples cárcere da alma - platonismo - que foi assumido pelo cristianismo, via o neoplatonismo dos primeiros séculos e que, até à nossa Era, encontra ecos em narrativas de teologia moral pré-moderna e distanciada da antropologia personalista do Vaticano II. Ainda somos carentes de atualizações e aprofundamentos do “humanismo integral” do Concílio. 

O cristianismo ainda pode dar passos significativos à reconciliação com o tema da sexualidade. Por último, na dimensão existencial, que está muito presente na engenharia antropológica de Francisco, há a dramática emergência da Igreja encarar e resolver determinadas questões que, por causa da distorção portada pelo Clericalismo, que sempre centralizou e direcionou a vida da Igreja limitada às ações dos eclesiásticos. Isso até os nossos tempos, ainda faz com que muitos tornem-se senhores absolutos de estruturas de poder, incongruências existenciais e ganância; mas não de serviço abnegado e genuinamente vocacional, como causa apaixonada pelo anúncio do Reino de Deus.

Um Padre com psicologia de Pai tem que ser um homem integrado e integrante, fazedor de pontes e capaz de fomentar, em seu próprio modo de vida, a capacidade de ser Pai das comunidades. Sem essa ecologia humana, o Padre perde a capacidade de cuidador de uma comunidade. Deixa a relação mistagógica e esponsal com o povo que é-lhe confiado. A modernidade filosófica tomou distância desta construção, com a sobrevalorização da ‘autonomia do indivíduo’; todavia, a teologia tem a sua fonte num Deus que é Abba - Pai. É o próprio Jesus que nos ensina (cf. Lc 10, 21-22; 11, 1-4). A tradição cristã nunca deixou de condicionar a experiência vocacional ao masculino - paternidade e ao feminino - maternidade. O que vem além disso é pura fumaça. Em muitos contextos, as pessoas do povo chegam a afirmar: “quem não presta para ser pai, não deve ser padre”. A sabedoria popular é interessante. 

É muito importante ter presente esse dado teológico e humano. As bases do cristianismo nunca deixaram de seguir essa linha de construção. Quando perdemos a capacidade intelectual e humana de organizar e propor esses ideais, a própria credibilidade da Igreja, quando defende determinados valores da sua Tradição Viva, é colocada em dúvida. Foi o que ficou patente nos últimos anos. A graça pressupõe a natureza humana. O testemunho do Padre é algo extremamente fino e de zelo permanente a ser observado por parte da Igreja. Sem bases humanas, o Padre terá muita dificuldade em ser Pai. Não é à toa que as línguas neolatinas - francês, espanhol, português e italiano - absorvem a etimologia de Pater - Pai - Padre.

A preocupação com as quatro dimensões - humana, intelectual, espiritual e pastoral - da formação presbiteral entrou sistematicamente na ‘Razão de Estudos’ dos ministros ordenados. Ensejo a conclusão fazendo menção ao que é dito sobre a importância da formação humana com as palavras de João Paulo II na “Pastores Dabo Vobis”, que são paradigmáticas para o todo desta reflexão: “sem uma oportuna formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento”. Ainda, continua o Santo Padre afirmando que “a formação humana dos padres revela a sua particular importância relativamente aos destinatários da sua missão: precisamente para que o seu ministério seja humanamente mais credível e aceitável, é necessário que ele modele a sua personalidade humana de modo a torná-la ponte e não obstáculo para os outros, no encontro com Jesus Cristo Redentor do homem; é preciso que, a exemplo de Jesus, que ‘sabia o que existe no interior de cada homem (cf. Jo 2, 25; 8, 3-11), o sacerdote seja capaz de conhecer em profundidade a alma humana, intuir dificuldades e problemas, facilitar o encontro e o diálogo, obter confiança e colaboração, exprimir juízos serenos e objetivos. 

Portanto, não só para uma justa e indispensável maturação e realização de si mesmo, mas também com vista ao ministério, os futuros presbíteros devem cultivar uma série de qualidades humanas necessárias à construção de personalidades equilibradas, fortes e livres, capazes de comportar o peso das responsabilidades pastorais” (cf. n. 43). Penso que passa por aqui essa preocupação: o cuidado permanente e o cultivo da formação humana, antes mesmo da entrada nos seminários até as ordenações, continuando por toda as nossas vidas. 

É o bem de todos que está em jogo, inclusive de todos nós que somos ministros ordenados. Precisamos de um olhar mais perspicaz e corajoso para abordarmos essa urgente “conversão das nossas relações” dentro da própria Igreja; pois ela tem essa reflexão que pode nos auxiliar na identificação do porquê da presença do feminino na existência sacerdotal, para que os mesmos reconheçam-se psicologicamente como padres que, na sua identidade antropológica mais íntima, são sempre pais espirituais de uma comunidade: geram filhos na fé, cuidam e os promovem à vida plena rumo ao Reino definitivo. Assim o seja!

NOTÍCIAS DA COMISSÃO DIACONAL

NOTÍCIAS DA ARQUIDIOCESE DE NATAL

NOTÍCIAS DA CNBB

NOTÍCIAS DO VATICANO