Uma Crônica Sobre a Morte Anunciada nas Favelas do Rio de Janeiro
O cheiro de pólvora ainda paira no ar. As marcas de bala nas paredes são a caligrafia perversa de uma guerra que ninguém declarou oficialmente, mas que todos vivem cotidianamente. Nesta semana, o Rio de Janeiro voltou a sangrar pelas feridas abertas de uma violência que tem três rostos igualmente brutais: o traficante que escraviza a comunidade, o Estado que abandona e depois executa, e a sociedade que assiste de longe, aliviada por não ser ela a vítima desta vez.
E é justamente neste 2 de novembro, Dia de Finados, que a liturgia nos convoca a olhar para os mortos. Mas quais mortos? Os "bandidos" mortos pela polícia? Os policiais mortos pelos traficantes? Os inocentes mortos no fogo cruzado? As crianças atingidas por balas perdidas que nunca se perdem por acaso? Ou todos eles, porque na verdade todos são filhos do mesmo Deus que hoje choramos, não é mesmo?
Jó na Favela: o Grito de Quem Perdeu Tudo; "Quem dera que minhas palavras fossem escritas! Quem dera fossem gravadas num livro!" (Jó 19,23). Jó grita porque sabe que sua dor pode ser esquecida, apagada, tornada irrelevante. E é exatamente isso que acontece nas favelas do Rio: as palavras não são escritas, as histórias não são gravadas, os nomes viram números e os números viram estatísticas que não chocam mais ninguém.
Jó perdeu tudo por uma aposta cósmica entre Deus e o Diabo. Os moradores das favelas cariocas perderam tudo por uma aposta fracassada do Estado brasileiro: a aposta de que a violência se combate com mais violência, de que a pobreza pode ser administrada com abandono, de que uma população inteira pode ser deixada à própria sorte e, quando a situação explode, ser punida coletivamente.
Mas Jó, mesmo destroçado, profere aquelas palavras que atravessam séculos: "Eu sei que o meu Redentor está vivo e que, por fim, se levantará sobre a terra" (Jó 19,25). Que redentor é esse que pode se levantar sobre os becos do Complexo da Penha, sobre os corpos estendidos no chão, sobre as crianças traumatizadas pelo som das rajadas de fuzil?
A fé de Jó não é ingênua. Ele não nega a injustiça, ele a denuncia. Mas no fundo do poço, ele se recusa a acreditar que a injustiça seja a última palavra. E talvez seja essa a única esperança que resta aos favelados: que, apesar de tudo, há um Redentor que ainda não desistiu deles, mesmo que todos os outros já tenham desistido.
O Senhor É Dono da Terra, mas e as Favelas, não pertencem a essa mesma Terra? "Do Senhor é a terra e o que ela contém, o mundo inteiro com os seres que nele habitam". Bonitas palavras. Palavras de cartão postal. Mas será que o Senhor é dono mesmo das favelas? Ou esses territórios foram entregues a outros senhores: os senhores do tráfico que cobram pedágio pela própria vida, os senhores da milícia que vendem "proteção" a quem mal tem o que comer, os senhores da política que aparecem de quatro em quatro anos pedindo votos e desaparecem no dia seguinte?
O salmista pergunta: "Quem pode subir até o monte do Senhor?". Mas a pergunta nas favelas é outra: quem pode descer até o asfalto sem ser confundido com bandido? Quem pode existir sem ser suspeito? Quem pode ser negro, jovem e pobre sem ser tratado como alvo?
A resposta do salmo é clara: "Quem tem mãos puras e inocente coração". O problema é que nas favelas do Rio, ter mãos puras não é suficiente. A inocência não é presumida, precisa ser provada, geralmente post-mortem, quando já não importa mais.
A Tríplice Violência: Tráfico, Estado e Abandono, sejamos honestos: há uma guerra civil não declarada no Rio de Janeiro. E nessa guerra, três forças atuam simultaneamente, cada uma contribuindo para o ciclo infernal de morte e destruição.
Primeiro, o tráfico: senhores feudais do século XXI, os traficantes escravizam comunidades inteiras. Cobram impostos, executam desafetos, recrutam crianças, controlam o ir e vir, decidem quem vive e quem morre. São o Estado paralelo, aquele que o Estado oficial permitiu que existisse por décadas de omissão. A população não admira os traficantes, ela os teme. Não há romantismo aqui, apenas terror cotidiano disfarçado de convivência forçada.
Segundo, o Estado ausente: durante décadas, o poder público tratou as favelas como territórios perdidos, zonas de sacrifício onde investir não valia a pena. Sem escola de qualidade, sem saúde, sem saneamento, sem transporte, sem oportunidades. O Estado se ausentou de suas responsabilidades básicas e, nesse vácuo, o crime organizado construiu seu império. É fácil demonizar o favelado quando você nunca lhe ofereceu uma alternativa real ao crime.
Terceiro, o Estado executor: e então, quando a situação se torna insustentável, o mesmo Estado que abandonou volta com força letal. Não vem com escolas, hospitais, empregos, vem com caveirões, helicópteros e fuzis. E aqui mora o grande perigo: quando o Estado passa a matar sem julgamento, quando a polícia age como justiceira, quando o devido processo legal é substituído pela execução sumária, o Estado se torna indistinguível do criminoso.
Paulo nos diz que Cristo veio destruir "todo Principado, toda Autoridade e todo Poder" (1Cor 15,24). Mas e quando os próprios principados e autoridades se tornam instrumentos de morte? Quando a polícia, que deveria proteger se torna mais uma fonte de terror?
A Polícia Despreparada e a Guerra Impossível: é preciso dizer com todas as letras, a maioria dos policiais que atuam nas favelas não foi treinada para aquilo. Foram preparados para um policiamento ostensivo urbano e se encontram no meio de uma guerra urbana. São mal pagos, mal equipados, mal preparados psicologicamente, e enviados para "resolver" um problema que não é policial, e sim, social, econômico, político.
E o resultado de tudo isso, qual poderia ser? Obviamente, policiais traumatizados que desenvolvem gatilho fácil. Operações mal planejadas que terminam em chacinas. Confrontos que matam inocentes e culpados indistintamente. E famílias de policiais que também choram seus mortos, porque essa guerra impossível cobra vidas dos dois lados.
Quando Jesus diz "Estai preparados" (Lc 12,40), certamente não está falando de preparação bélica. Mas é exatamente essa a única "preparação" que o Estado oferece às favelas: não prepara jovens para o mercado de trabalho, mas os prepara para serem alvos. Não prepara policiais para construir pontes com a comunidade, mas os prepara para o confronto.
O Estado que virou bandido, sim, aqui está a verdade mais dolorosa: quando o Estado age como matador sem julgamento, ele perde sua legitimidade moral. Quando policiais executam suspeitos sem chance de defesa, quando operações resultam em dezenas de mortos sem uma única prisão, quando corpos são plantados e cenas de crime são adulteradas, o Estado não está combatendo o crime, na verdade ele está praticando crime.
São Paulo escreve sobre Cristo submetendo todos os inimigos sob seus pés: "É preciso, com efeito, que ele reine até que ponha todos os inimigos debaixo de seus pés" (1Cor 15,25). Mas o Reino de Cristo não se estabelece pelo fuzil, pela execução, pela vingança institucionalizada. O Reino de Cristo se estabelece pela justiça, pela misericórdia, pela transformação.
Quando o Estado se torna executor, ele cria novos traumas, novas vinganças, novos ciclos de violência. Cada inocente morto em operação policial é uma semente de ódio plantada. Cada jovem executado sem julgamento é um recrutamento para o crime. Cada família destruída pela violência estatal é uma ferida aberta na democracia.
E o Povo, onde está? Refém, entre a Cruz e a Espada no meio desse inferno, vivendo como reféns do tráfico, que controla territórios, cobra tributos, proíbe festas, impõe toques de recolher, mata quem "dá mancada". Reféns da ausência do Estado, que não oferece escola de qualidade para os filhos, hospital para os doentes, emprego para os jovens, dignidade para os idosos. Reféns da presença violenta do Estado, que invade casas sem mandado, aterroriza crianças, mata "por engano", e depois diz que as vítimas eram "envolvidas com o tráfico", uma acusação póstuma impossível de refutar.
Onde está o Evangelho para essas pessoas? Jesus fala de servos vigilantes, esperando o Senhor voltar da festa de casamento (Lc 12,35-40). Mas nas favelas, a vigilância não é espiritual, é questão de sobrevivência. Ficar acordado não é exercício ascético, é precaução contra o tiroteio noturno. E o Senhor que esperamos, será que virá para nos salvar ou para nos julgar sumariamente?
A Ressurreição Como Resistência Política; "Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram" (1Cor 15,20). Esta não é uma afirmação apenas teológica, é profundamente política. Dizer que Cristo ressuscitou é dizer que a morte não venceu. E se a morte não venceu, então toda estrutura que produz morte está condenada ao fracasso.
A ressurreição é a grande resistência contra todos os impérios da morte: Contra o império do tráfico que mata para manter poder. Contra o império do Estado omisso que mata por negligência. Contra o império do Estado violento que mata por execução. Contra o império da sociedade indiferente que mata por omissão.
Crer na ressurreição é recusar-se a aceitar que essa situação seja normal, irreversível, inevitável. É afirmar que outro mundo é possível, não apenas no céu, mas aqui, nas favelas do Rio, nos becos escuros, nas comunidades abandonadas, deste Brasil de meu Deus.
E o que fazer? Vigiar e agir, é o que nos diz o Evangelho deste domingo de Finados: "Estai preparados, porque, à hora em que não pensais, virá o Filho do Homem" (Lc 12,40). Mas o que significa estar preparado diante dessa tragédia?
Estar preparado é: não normalizar a violência, pois cada morte importa, cada vida perdida é uma tragédia, não podemos aceitar os números como se fossem naturais. Devemos exigir políticas públicas reais, uma vez que, segurança não é só polícia, é também escola, saúde, emprego, cultura, esporte, dignidade. É presença construtiva do Estado, não apenas repressiva. É cobrar responsabilização de Policiais que executam sem perguntar, portanto, devem ser julgados, assim, operações mal planejadas devem ser investigadas e autoridades que promovem violência estatal devem responder por isso. É escutar as vítimas, pois, só quem vive nas favelas sabe o que ali se precisa. Não é helicóptero com atirador de elite. É oportunidade, é respeito, é cidadania. É denunciar o abandono de um Estado que não pode estar presente apenas para matar. Ou constrói cidadania ou perde legitimidade. É construir pontes entre favela e asfalto, entre polícia e comunidade, entre sociedade e periferia, pois a segregação só alimenta a violência. É investir em prevenção, pois cada real gasto em educação de qualidade é um fuzil a menos no futuro. Cada jovem com oportunidade é um soldado a menos para o tráfico.
Uma oração pelos "três mortos"
Hoje, no Dia de Finados, rezemos: pelos inocentes mortos no fogo cruzado, que suas vidas não sejam esquecidas, que suas mortes não sejam em vão, que seus nomes sejam pronunciados até que a justiça seja feita.
Rezemos pelos policiais mortos no cumprimento do dever, enviados para uma guerra impossível, vítimas de um sistema que os usa como bucha de canhão, que suas famílias encontrem consolo e que suas mortes nos lembrem do preço absurdo dessa política de confronto.
Rezembos pelos criminosos mortos sem julgamento, sim, por eles também. Porque mesmo quem errou tem direito ao devido processo. Porque execução sumária não é justiça. Porque cada um deles também foi criança um dia, também tinha família, também era imagem de Deus, por mais desfigurada que essa imagem estivesse.
A Esperança que não se rende: Jó termina sua lamentação com uma declaração de fé: "Eu sei que o meu Redentor está vivo" (Jó 19, 25). Não é uma fé ingênua. É uma fé que passou pelo vale da sombra da morte e se recusou a desistir. O povo das favelas conhece esse tipo de fé. A fé de quem acorda todo dia para ir ao trabalho mesmo sem saber se vai voltar para casa. A fé de quem cria filhos em meio ao tiroteio. A fé de quem vai trabalhar mesmo sabendo que é tratado como suspeito. A fé que resiste, que insiste, que não se entrega. E é essa fé que, um dia, vai vencer. Porque o último inimigo a ser destruído é a morte (1Cor 15,26). E quando a morte for vencida, todos os seus aliados cairão com ela: o tráfico que mata por poder, o Estado que mata por omissão e depois por execução, a sociedade que mata por indiferença.
Até Lá, não descansaremos e que os mortos descansem em paz. Mas os vivos não podem descansar. Não enquanto mães enterrarem filhos. Não enquanto crianças brincarem ao som de fuzis. Não enquanto jovens tiverem como única perspectiva o tráfico ou o subemprego. Não enquanto o Estado for sinônimo de ausência ou de violência. Não enquanto ser favelado for uma sentença de morte antecipada.
"Eu sei que o meu Redentor está vivo." Mesmo nas favelas do Rio, mesmo no meio da guerra civil não declarada, mesmo quando todos se tornam algozes, mesmo quando a esperança parece morta. O Redentor está vivo. E enquanto Ele estiver vivo, a luta continua.
Em memória de todas as vítimas da violência no Rio de Janeiro, no Brasil e no Mundo, sejam, inocentes, policiais, criminosos, pois todos são filhos de Deus, todos dignos de luto, todos clamando por um mundo diferente.
"Que a última palavra não seja da morte, mas da Vida."
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