domingo, 6 de julho de 2025

O Tempo em Santo Agostinho: Entre a Eternidade de Deus e a Fragmentação Humana (Dom João S Cardoso)

A pergunta provocativa — “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — introduz, no Livro XI das Confissões de Santo Agostinho, uma das mais belas e profundas meditações já feitas sobre o tempo. Longe de ser uma curiosidade irrelevante ou uma especulação vazia, diante da qual se poderia responder jocosamente, como ele mesmo ironiza — “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos” (Confissões, XI, 12) — trata-se, na verdade, de uma interrogação existencial sincera, nascida do desejo de compreender a própria condição humana à luz da fé.

Recusando as respostas simplistas, Agostinho confessa: não sei. Mas logo afirma algo essencial: antes da criação, não havia tempo, pois o próprio tempo é criatura de Deus. “Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo” (Confissões, XI, 14). Com essa afirmação, Agostinho nos convida a reconhecer que o tempo não é eterno, apenas Deus o é. E se Deus é eterno, é porque nele não há sucessão de instantes, nem começo ou fim. Tudo o que para nós é passado, presente ou futuro, em Deus é um eterno presente. “Teu hoje é a eternidade” (Confissões, XI, 13), afirma ele, com a força de quem contempla esse mistério com reverência e assombro. A eternidade divina não se mede, não se divide, não se conta; nela tudo é, tudo permanece, tudo está presente.

Essa reflexão se mostra atual em nossa cultura, marcada por um paradoxo profundo: nunca se correu tanto e nunca se sentiu tanto cansaço, dispersão e tédio. Vivemos como fugitivos do próprio tempo. As agendas estão lotadas, os compromissos se sobrepõem e o tempo escorre por entre os dedos. Há quem se sinta oprimido pela pressa; outros, esmagados pelo vazio, pelo tempo ocioso e sem sentido. O tempo, que deveria ser dom, tornou-se fardo.

Essa experiência de inquietação diante do tempo já habitava o coração de Agostinho. “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar, já não sei” (Confissões, XI, 14). A célebre frase não expressa ignorância, mas sabedoria: o tempo é familiar a todos nós, mas nos escapa quando tentamos traduzi-lo em conceitos. Para Agostinho, o tempo não é uma entidade física mensurável em si mesma, mas uma experiência da alma. Ele está no interior do ser humano, como uma tensão entre o que foi, o que é e o que ainda virá. Por isso, Agostinho distingue o presente do passado (memória), o presente do presente (atenção) e o presente do futuro (expectativa).

Ao refletir sobre o tempo, Agostinho distingue claramente entre a eternidade divina e a temporalidade humana. Deus é eterno, imutável, pleno. Nós somos temporais, instáveis, limitados. Deus não espera, não começa nem termina. Ele simplesmente é. Perguntar o que Deus fazia 'antes' de criar o mundo é um erro conceitual, pois o 'antes' só faz sentido dentro do tempo, e este só começou quando Deus criou todas as coisas. O tempo, o espaço e todas as criaturas foram criados por Deus. Ele está fora do tempo, mas entra nele por amor, por meio da Encarnação do Verbo. O Eterno fez-se tempo e, por isso, o tempo foi redimido.

Embora Agostinho não utilize os termos gregos chronos e kairós, sua teologia nos ajuda a compreendê-los com clareza. Chronos é o tempo cronológico, linear, o tempo dos relógios e calendários. Já kairós é o tempo oportuno, o instante carregado de sentido, o momento da graça. Quando Agostinho suplica: “Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei [...] tua palavra é minha alegria” (Confissões, XI, 2), ele não está pedindo mais horas no dia, mas um tempo novo, um tempo pleno, fecundado pela presença de Deus. Trata-se de transformar o tempo comum em tempo habitado, em tempo de salvação.

Essa visão agostiniana do tempo como dom e espaço de encontro com o Eterno nos interpela profundamente. Vivemos em uma cultura que perdeu a capacidade de esperar, de contemplar, de simplesmente estar. Falta tempo para Deus, para os outros, para si mesmo. Refletir sobre o tempo, nesse contexto, não é evasão, mas resistência. É uma forma de resgatar o sentido da vida. O tempo, vivido com sabedoria, torna-se lugar de comunhão, espaço de graça, escola de paciência.

As implicações dessa visão são múltiplas. Teologicamente, ela nos lembra que Deus, eterno, não apenas criou o tempo, mas quis entrar nele para salvá-lo. O tempo é, portanto, o lugar da revelação e da salvação. Espiritualmente, somos convidados a habitar o tempo com profundidade, atenção e gratidão. Cada instante pode ser kairós, um tempo favorável, uma visita da graça. E pastoralmente, há urgência de uma autêntica pedagogia do tempo. Precisamos redescobrir o valor do descanso, da alternância entre ação e contemplação, do domingo como dia do Senhor. A administração do tempo se tornou um desafio pastoral. Não basta ensinar a fazer mais coisas em menos tempo, é preciso aprender a viver com mais sentido e menos pressa.

O tempo pode ser opressor quando mal vivido, mas torna-se libertador quando habitado com fé. Agostinho nos ensina que o tempo não é condenação, mas caminho. Somos peregrinos do tempo, destinados à eternidade. Quando vivemos o presente com fé e amor, já tocamos, em parte, o eterno. Em Cristo, o eterno entrou no tempo para transfigurá-lo. Viver bem o tempo é preparar-se para a eternidade. É permitir que a esperança nos modele. É compreender que até mesmo os instantes mais difíceis podem ser sagrados. E quando nos sentimos dispersos, vazios ou perdidos, resta-nos a oração que resume toda a vida de Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I, 1).

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