Enquanto o mundo acompanha com apreensão os desdobramentos do conflito em Gaza, entre ofensivas militares e tímidas tentativas de paz, duas vozes vindas da Igreja Católica oferecem uma reflexão que ultrapassa os muros do templo e alcança os corredores da política internacional. De um lado, o Cardeal Robert Sarah, conhecido por sua firmeza doutrinária, que outrora afirmou: “Devemos retornar ao essencial: a Deus, à oração, à Eucaristia, à confissão, à verdade do Evangelho. A Igreja não é uma organização humanitária. Ela é a porta para a vida eterna.” e de outro lado, ainda ecoam as palavras do Papa Francisco, falecido em abril deste ano, que em sua última carta aos católicos do Oriente Médio escreveu: “Estou com vocês... habitantes de Gaza, martirizados e exaustos.” Essas declarações, embora distintas em tom e contexto, não se contradizem. Elas revelam uma tensão fecunda entre o princípio e a prática, entre o eterno e o imediato, uma tensão que a política moderna precisa aprender a manejar.
A liturgia de Nossa Senhora Aparecida, celebrada em 12 de outubro, oferece uma chave simbólica para essa compreensão. No Evangelho das bodas de Caná, Maria percebe uma necessidade concreta, a falta de vinho, e aponta para a única solução verdadeira: “Fazei tudo o que ele vos disser.” Ela não resolve o problema com suas próprias mãos, mas também não ignora o sofrimento. Eis aí uma metáfora poderosa para a política: reconhecer os limites da ação estatal sem abdicar da responsabilidade de encaminhar soluções.
A primeira leitura da solenidade mariana apresenta Ester, que arrisca a própria vida para interceder por seu povo. Sua súplica “Concede-me a vida, e a vida do meu povo” ressoa como um chamado à coragem política diante dos poderes estabelecidos. Quando Francisco denunciou “a vergonhosa incapacidade da comunidade internacional de silenciar as armas”, ele não fazia apenas diplomacia. Exercia o papel que toda liderança deveria assumir, colocar-se entre os vulneráveis e os poderosos, como ponte e escudo.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, silenciosa e transformadora, nos lembra que a verdadeira liderança não precisa de discursos inflamados, mas de gestos que apontem para soluções duradouras. Assim como Sarah nos lembra que a missão última é transcendente, Francisco nos ensinou que essa transcendência começa no cuidado com os que sofrem.
Neste momento histórico, em que o conflito em Gaza reacende esperanças e temores, mesmo em um momento que parece ter chegado a tão sonhada paz, a política global é convocada a manifestar sua verdadeira identidade. Não como mais uma engrenagem burocrática, mas como espaço de mediação entre o humano e o possível. O Cardeal Sarah nos lembra que princípios não podem ser negociados e o saudoso Papa Francisco nos ensinou que princípios só têm sentido se encarnados no cuidado com o outro.
A Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, nos convida a essa dupla fidelidade: aos valores que sustentam a civilização e à compaixão que a torna habitável. Como Maria em Caná, a política precisa perceber onde falta o vinho da justiça, da paz, da dignidade. E como ela na Anunciação, precisa dizer “sim” ao projeto de transformação, mesmo quando os caminhos parecem obscuros.
No fim das contas, o Cardeal Robert Sarah e o Papa Francisco, cada um com sua ênfase, apontam para a mesma direção: uma política que não se contenta com o imediato, mas prepara o terreno para o encontro definitivo entre humanidade e esperança. Uma política que reza, sim, mas que também age. Que confessa seus erros, mas que também denuncia as injustiças. Que adora o bem, mas que também serve aos que foram esquecidos.
“Fazei o que ele vos disser.” Talvez esse seja o programa político mais urgente para um mundo que busca sentido entre os escombros da guerra e os lampejos da paz.
Diácono Edson Araújo