As cidades, lugar por excelência da convivência humana, nasceram do desejo de superar o isolamento, o medo e viver em comunhão. Contudo, no mundo contemporâneo, o espaço urbano tem sido marcado pelo medo e pela insegurança. Como assinala Bauman, em Confiança e medo na cidade, vivemos objetivamente em sociedades mais seguras do que no passado, mas subjetivamente sentimos mais pânico, ameaça e desconfiança. Essa contradição revela que o medo não nasce apenas dos índices de criminalidade, mas também da fragilidade das relações sociais e da percepção de vulnerabilidade cotidiana.
As cidades tornaram-se palco de profundas desigualdades. De um lado, áreas urbanizadas e privilegiadas, protegidas por aparatos de segurança; de outro, a expansão de cinturões periféricos abandonados, onde o Estado é ausente e grupos que atuam à margem da lei assumem o controle. Recordo o testemunho que ouvi certa vez de uma liderança comunitária que, ao abrir a sede da associação, viu o espaço ser invadido por um grupo armado que perseguia alguém ali refugiado. As pessoas presentes ficaram sob a mira de armas, experimentando de perto o que significa viver em territórios onde a violência dita as regras. Esse caso, como tantos outros, retrata o que ocorre cotidianamente em nossas cidades, transformadas em lugares de risco, tendo como uma das consequências o esvaziamento do espaço público, que deveria ser cenário de encontro e confiança.
A palavra “comunidade” evoca aconchego, confiança e proteção. Entretanto, em muitos lugares, as pessoas acabam renunciando a parte da liberdade em troca de segurança. Em alguns contextos, assiste-se à caricatura distorcida dessa lógica, quando grupos armados oferecem uma “proteção” que, na verdade, significa imposição de medo e cerceamento da liberdade. O desafio que temos diante de nós é recuperar o verdadeiro sentido de comunidade, reconstruindo-a como espaço de solidariedade, confiança e cuidado mútuo, onde o outro não seja visto como ameaça, mas como irmão.
Diante da interiorização da violência no Brasil, não basta combater os sintomas. É urgente propor iniciativas concretas que reconstruam vínculos sociais e ofereçam alternativas à lógica do medo. Uma resposta eficaz a essa realidade é investir na cultura da paz, que não é um conceito abstrato, mas se expressa em práticas educativas, esportivas e culturais, projetos de inclusão social e políticas públicas capazes de garantir segurança, saúde, lazer, cultura e oportunidades para crianças, jovens, adultos e idosos. Trata-se, portanto, de fortalecer o capital social da confiança e da cooperação.
Organizações da sociedade civil e igrejas presentes nesses espaços já oferecem serviços e estruturam iniciativas que ajudam a reconstruir a ideia de comunidade. Entretanto, o Estado brasileiro precisa fazer mais diante da gravidade da situação da segurança pública. Mais do que políticas de repressão, são necessárias estratégias que façam as cidades voltarem a ser lugares habitáveis e humanos. Cidades seguras não se medem apenas por estatísticas criminais, mas pela sensação psicológica de segurança que seus cidadãos experimentam: poder caminhar pelas ruas, frequentar escolas, igrejas, teatros e praças sem medo, sentir que a vida é protegida e valorizada.
A violência e o medo desafiam as cidades brasileiras. Para enfrentá-los, é preciso reconstruir a confiança, revitalizar o espaço público e apostar em políticas que fortaleçam o sentido comunitário. Assim será possível transformar as cidades em lugares de encontro, justiça e paz. A cultura da paz não é uma utopia distante, mas um caminho urgente para que nossas cidades deixem de ser espaços de medo e se tornem novamente “morada humana”, como Bauman e a tradição sociológica nos recordam.