UMA IGREJA QUE NOS DEIXA COM MUITAS INTERROGAÇÕES NOS TEMPOS ATUAIS
PARTE II
“As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1,1).
UMA COMUNIDADE DE FÉ, DE AMOR E DE SERVIÇO AOS POBRES
Olhando o livro dos Atos dos Apóstolos, temos uma ideia do que era a “Assembleia dos Discípulos de Jesus” no início da sua caminhada eclesial. Fiéis à catequese dos Apóstolos, reuniam-se para a partilha do Pão da Palavra e da Eucaristia, suscitando em cada um/a o sentido de pertença comunitária, do coletivo, pondo-se em comum o que possuíam para superar suas indigências e vulnerabilidades, o que gerava entre os seus participantes um novo modo de vida, através de uma “cultura comunitária” (cf. At 2,42-47). Este novo modo de vida era condição e exigência para qualquer pessoa que, aderindo ao Cristianismo, pudesse fazer parte daquela Comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado. Portanto, caso algum “rico” ou possuidor de mais bens fosse convertido, a exigência era a adesão a esta condição (Lembram do caso de Ananias e Safira? - cf. At 5,1-5). Bom enfatizar também que não se trata de uma simples comunidade sociológica, como conhecemos, mas uma Comunidade de fé, de amor e de serviço, onde a vida dos mais pobres era levada em consideração e ocupava um lugar especial, de modo que “não havia necessitados entre eles”.
Essa Comunidade de “fé, amor e serviço” a quem Atos se refere era a dos discípulos, seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, preso político, condenado por dois poderes (eclesial-judaico e político-romano), torturado e assassinado com todos os requintes de crueldade possíveis à época, simbolizado pelo terrível instrumento de pena de morte, que era a cruz. No entanto, essa Comunidade acreditava que não se tratava de seguir um cadáver, mas o Ressuscitado! Isso era o que alimentava aquela Assembleia e isso provocava uma maneira de vivência, um modo de vida, uma nova cultura, uma mística, impregnada dessa espiritualidade, capaz de ser reconhecida e temida pelo próprio poder romano que perseguia, torturava e matava os seus participantes e lideranças. No entanto, esses seguidores se multiplicavam, encantados com esse “novo jeito de ser”, esse “modo de vida comum”, tal modo que Tertuliano (convertido ao cristianismo aproximadamente em 195 d.C.), na sua obra “Apologeticus” vai afirmar que “Sangue de cristãos é semente de novos cristãos”, atestando o crescimento dessa “Igreja dos pobres”.
CONCÍLIO VATICANO II E A IGREJA DOS POBRES
Creio que a base e todo o fundamento da Igreja primeira, inspirou profeticamente o Papa Roncalli (São João XXIII), quando convocou e instalou o Concílio Vaticano II, no qual buscou apresentar ao mundo essa Igreja, como “uma Igreja dos pobres”. Tal modo, inicia sua Constituição Pastoral afirmando: “As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1,1).
Após o Concílio, na América Latina, seguem-se as Conferências Episcopais que buscaram traduzir a Gaudium et Spes (e todo o Concílio), situando a Igreja Latino-América a partir do contexto de exclusão (“Ricos mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres”) e afirmando evangelicamente a sua “opção pelos pobres”, que mais tarde acrescentou-se o termo “preferencial”. Claro que a história do “preferencial” não é encontrada em Medellin, sendo introduzida posteriormente (Puebla) “para agradar parte do episcopado que não entendia o sentido da ‘opção pelos pobres’” (e ainda hoje não consegue entender, em boa maioria ou faz questão de não entender...). O Papa Francisco retoma o Concílio e as Conferências LA e tem repetidamente afirmado e, todos ou uma esmagadora maioria, não o escutamos: “desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar”. Ele que assumiu, inclusive, o nome de Francisco, já nos indicando que a escolha do nome do “pobrezinho de Assis”, não é apenas uma questão de “simpatia”, mas para lembrar à sua Igreja o compromisso e o papel que a ela deve ter diante das tantas situações de vulnerabilidade nas quais bilhões de pessoas, “imagem e semelhança do Criador”, se encontram no mundo e precisam ser resgatadas em seus direitos para que “tenham vida em abundância”. Claro que, não compete a Igreja tirar essas pessoas da sua miserabilidade, mas compete, sim, a ela, ser sinal e instrumento profético junto a estas, a partir da sua própria missão evangelizadora, despertando nelas, como filhas do Deus da vida, para que se tornem protagonistas da sua própria existência na luta por seus direitos, pela justiça e pela transformação do meio onde vivem. Isso significa dizer que o processo de evangelização, mais que uma catequese e celebração do culto, deve, a partir destes, provocar um modo de vida, como na Igreja primeira.
Deste modo, no meu curto entendimento, a questão da “Opção pelos pobres” é clara em toda a Escritura (se tomarmos já no AT o livro do Êxodo, por exemplo, vemos o próprio Deus tomando “partido” pelos pobres, pelos escravizados e se fazendo entre estes, para provocar todo um processo de libertação. No NT, quando Jesus, retomando Isaías, assume-se missionário, é enfático, revelando a sua postura diante de uma realidade cruel de exclusão e, como o Pai, toma também “partido”, colocando-se ao lado dos pequeninos do Reino: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos presos e, aos cegos a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19). Seria interessante percebermos que Jesus não diz para anunciar “preferencialmente” a Boa Nova aos Pobres. Assim, logo concluímos que, se formos fiéis ao Evangelho, a Opção pelos Pobres não pode ser “maquiada”, porque ela é uma Opção de vida. É manifestar que se tem um lado, apesar de ser para todos, como Jesus, que tinha consciência do Seu compromisso com os pobres, apesar de não rejeitar sentar-se à mesa dos ricos, desde que estes se convertessem, como nos deixou claro, no caso de Zaqueu. Logo, a Igreja afirmar a Opção pelos pobres, que brota da Sagrada Escritura e da presença e ação de Jesus de Nazaré (desde a manjedoura, passando por todo o seu caminho missionário, sobretudo nas aldeias e periferias da existência humana, incluindo na vida os excluídos do Seu tempo e nos reafirmando o objetivo de sua vinda ao mundo: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” - Jo 10,10, até o Calvário, quando entrega Sua vida por causa dessa missão entre os pobres - condenado como herege por Sua Igreja e politicamente como sublevador por defender a vida dos mais pequeninos), reafirma sua nítida missão de portadora e anunciadora deste Evangelho, revelando ao mundo sua fidelidade a Jesus de Nazaré.
NECESSIDADE DA VOLTA ÀS RAÍZES PARA COMBATER A PRAGA DO CLERICALISMO
O Papa Francisco tem, então, nos chamado a atenção dessa necessidade de uma “volta às raízes”, incitando a sairmos das “sacristias empoeiradas” para irmos às “periferias existenciais” (cf. Evangelii Gaudium). Ele deseja uma Igreja sempre em saída, pobre, que vá ao encontro das pessoas em suas realidades. Também tem manifestado com veemência sua preocupação com alguns muitos desafios que a Igreja vem enfrentando diante do mundo hodierno e, que tem atrapalhado o processo de evangelização. São as “pesadas e pouco eficazes estruturas”, com seus vícios, como por exemplo, a volta a um clericalismo exacerbado, criando uma verdadeira “casta” que descaracteriza os pastores do povo de Deus, colocando-os numa postura de “meros administradores” ou “funcionários do Sagrado”, tornando a Igreja uma simples “alfândega burocrática”, como nos chama a atenção o próprio Papa. Este câncer religioso tem levado a Igreja a uma distância terrível dos pobres, dos sofredores, das pessoas mais simples, contradizendo o que ela mesma anuncia e é sua missão. No entanto, a questão da proximidade com os pobres não se dá apenas pela doação de “esmolas”, mas reintroduzindo-os na Comunidade dos fiéis, independentemente de sua condição, tal modo que venham a se sentirem acolhidos e amados. Como diz o Papa Francisco, a Igreja tem que “falar aos corações com a ternura de mãe” e seja um espaço como “uma verdadeira casa paterna” onde os pobres, os pecadores, os indigentes e os “não ser” possam ser acolhidos para sentirem o carinho que Deus tem por eles.
Segundo Francisco, “o clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O pastor tem a capacidade de ir à frente do rebanho para mostrar o caminho, ficar no meio do rebanho para ver o que está acontecendo dentro dele e também ficar atrás do rebanho para garantir que ninguém fique para trás. Já o clericalismo exige que o pastor fique sempre na frente, estabeleça uma rota e puna com excomunhão quem se desvia do rebanho. Em suma: é precisamente o oposto do que Jesus fez. O clericalismo condena, separa, frustra e despreza o povo de Deus” (Papa Francisco, 5 de setembro de 2019, diálogo com os Jesuítas de Moçambique e Madagáscar: https://www.laciviltacattolica.it/articolo/la-sovranita-del-popolo-di-dio/ ).
Infelizmente, esse é o modelo que nos últimos tempos, apesar de Francisco, boa parte da Igreja parece ter assumido. Vemos com tristeza, com suas exceções, o caminho que vem se percorrendo e que reflete essa realidade “ante evangélica”. Se olharmos bem, os sinais são claros: das vestes clericais às pomposas liturgias distantes da realidade do povo onde tudo se revela, menos a Jesus Cristo pobre, missionário dos pobres; das estruturas sofisticadas dos templos bem ornados e com ricas alfaias às pessoas que compõem o culto e que ocupam sempre os primeiros lugares e onde, normalmente, os pobres não se sentem ali incluídos; das formações alienantes e às vezes até contrárias ao Ensino Social da Igreja e do próprio Papa Francisco (recheadas pela teologia da prosperidade e atualmente incrementadas pela dominiologia neopentecostal) às práticas que indicam tanta falta de acolhimento, onde a lei pesa mais que a Palavra de Deus, entre outras questões. Resumindo: É necessário escutar os apelos de Francisco, do Ensino Social da Igreja, do próprio Evangelho e o gemido dos empobrecidos e reconhecermos que há uma distância efetiva entre esse modelo de Igreja e a realidade social, política e econômica da grande maioria do povo de Deus, onde os pobres não são contados e, o pior, não há preocupação alguma em introduzi-los no meio da Comunidade dos fiéis e da sociedade. Esse modelo contradiz o Concílio Vaticano II, as Conferências Episcopais e o próprio Evangelho. O “homem da mão seca” que trata o Evangelho, símbolo dos excluídos e excluídas do Templo, das Sinagogas e da Sociedade, continua excluído da vida, à margem do que deveria ser seu espaço, em primeiro lugar, como quis Jesus, que o introduziu no centro da vida da comunidade.
PASTORAIS SOCIAIS E SERVIÇOS APROXIMAM A IGREJA DOS POBRES
Entretanto, por outro lado, não podemos negar o esforço de boa parte das Pastorais Sociais, Serviços e Movimentos que tentam traduzir o Evangelho em suas ações, tentando aproximar a Igreja dos mais vulnerabilizados e torná-los partícipes na caminhada, através de um processo de evangelização que leva em conta a sua realidade e que se soma às suas lutas por direitos e reconhecimento na sociedade para que sejam respeitados. No modelo clerical, no entanto, muitas vezes falta, pela parte institucional, o devido reconhecimento, apoio e envolvimento. Não poucas vezes, aqueles que atuam diretamente nesse meio são tratados como de “terceira categoria” e são renegados por parte da própria Igreja, acusados de agir não pela imposição do Evangelho e do Ensino Social da Igreja, mas por ideologias, por questões partidárias ou algo que o valha.
Oxalá um dia essa Igreja em Saída, que tanto quer Francisco, revele-se e se disponha a ir às periferias humanas e geográficas para ser presença profética, “moldando”, como lá nas origens, um modo de vida, uma nova e antiga cultura, carregada de humanidade, de solidariedade e de amor profundo junto daqueles que já estão cansados de esperar, como nos alerta o Papa Francisco, quando de sua visita ao Brasil, por ocasião da XXVIII Jornada da Juventude, no Rio de Janeiro, em 2013: “Faz falta uma Igreja que não tem medo de entrar na noite escura deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido”:
UMA IGREJA POBRE E PARA OS POBRES É UMA IGREJA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA
Todavia, devemos ter claro que uma Igreja pobre e próxima dos pobres nas suas lutas, incomoda muita gente, interna e externamente (vejamos, como exemplo concreto, a atuação da Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, na qual o seu Pároco, Pe. Júlio Lancellotti, atua junto à população em situação de rua), correndo o risco sempre da perseguição. Assim, ao longo da história secular da Igreja presenciamos tanto martírio. Uma Igreja dos pobres e para os pobres suscitará sempre o ódio, a aporofobia por parte dos ricos e opressores que preferem “manter a ordem e o progresso” não interessando a eles a vida destes. Porém, também devemos ter claro que, uma Igreja sem ser perseguida e sem martírio, indica acomodação ao sistema opressor, dos quais os pobres são vítimas, levando a Igreja à infidelidade ao Evangelho e ao seu próprio fundador que também foi mártir por se colocar ao lado dos pobres. Como nos lembra o dominicano, Frei Beto, devemos ter claro essa consciência e entender a “causa mortis” de Jesus: “Ele não morreu de dor de barriga e nem de uma ‘barruada’ de camelos nas ruas de Jerusalém, mas sim se tornou um preso político que foi condenado, torturado e morto por causa da sua postura no meio dos mais pobres e excluídos do Seu tempo”.
Coordenador Executivo do Serviço de Assistência Rural e Urbano- SAR