Por Pe. Matias Soares
A Igreja Católica tem uma estrutura hierárquica. Essa faz parte do seu DNA. A sua organização é reconhecidamente marcada por uma pirâmide, que ainda é filha dos esquemas que foram assumidos historicamente das culturas semítica e greco-romana. Foi havendo uma sobreposição desta ao modelo carismático das primeiras comunidades cristãs. Gradativamente foi sendo constituída uma forma de sistematização das ações eclesiásticas. A Tradição da Igreja é um organismo vivo e animado pela presença do Espírito Santo. A legitimidade do desenvolvimento destes ordenamentos é um dado reconhecido pela própria sua maneira de ser enquanto sacramento universal de salvação, que tem a missão de atualizar a presença de Jesus Cristo no mundo. O que ela é, só tem sentido porque o faz em nome Dele, o qual é a verdadeira Luz dos Povos (cf. LG, 1). Situo o ministério ordenado e hierárquico nesta perspectiva teológica. A Sucessão Apostólica é o sustentáculo que corrobora o papel dos ministros ordenados na vida das comunidades eclesiais e a sua representatividade, enquanto servidores dos demais membros do Povo de Deus (cf. LG, cap. III).
Na sua impostação hierárquica, a Igreja depara-se com o desafio de gerenciar o poder. Esse já começou a existir dentro do próprio colégio apostólico contemporâneo de Jesus (cf. Mc 10, 35-45). A era apostólica, basicamente na primeira metade do século II, tem uma estrutura com poucos traços de hierarquia e os bispos e presbíteros respondem pelo próprio título do ministério deles, ou seja, presidir a comunidade e os ritos e, no caso dos epíscopos, guiar e proteger a comunidade. Nesse contexto, os ministérios dos bispos, presbíteros, doutores (catequistas), anciãos e diáconos eram ministérios nascidos na naturalidade das exigências. Testemunhamos no período um governo exercido de forma colegial e participativa, próprio da Igreja sinodal.
A perda da sinodalidade ocorre quando da formatação de funções hierárquicas bem definidas e com a integração com os poderes do Estado (cf. BOGAZ, A. S. Vocabulário Teológico, 2022, p. 326). A impostação mais circular equilibra o exercício do poder dentro da comunidade. No tempo, a Igreja vai ganhando corporalidade institucional e, com ela, as necessidades próprias de um modo de existir nos espaços do Império e dos estados. Essa microfísica vai cedendo lugar aos desafios globais da catolicidade, com seu aparato burocrático. A Igreja, com esta forma de governo, hierárquico e teocêntrico, ganhará capilaridade e força em todos os canais institucionais do ocidente e do oriente do século IV até o XVI, com suas reverberações mais incisivas com a Revolução Francesa (1789) e suas consequências para o fim da Cristandade e um novo momento chamado, no contemporâneo, de pós-cristianismo (cf. C. Dotolo, “Teologia e Postcristianesimo”).
A mentalidade tendenciosa à sede pelo poder e o domínio ainda está entranhada no modo de conceber a Igreja enquanto sociedade hierárquica e portadora de influência secular. O assenhorar-se dos outros, colocar-se em situação de controle dos demais, é uma tentação que está na raiz do pecado das origens: O homem que quer assumir o lugar de Deus (cf. Gn 3, 1-24). Enquanto realidade divina, mas constituída por pessoas, a Igreja também está sujeita às condições do pecado e seus fenômenos. A sua organização hierárquica, por isso, quando não está iluminada pela conversão ao Evangelho, que tem um conteúdo preciso contido na categoria “Reino de Deus”, e a abertura à Graça, que redime e santifica, quando assume o lado pervertido do poder, que não serve; mas oprime, fere e mata, traz males para as comunidades dos ministros ordenados.
A partir da Boa Notícia anunciada por Jesus Cristo e à qual Ele mandou anunciar, o exercício do poder – potestas – eclesial é autêntico quando transparece pela forma de testemunhar o serviço. Por meio deste, aí sim, a Igreja terá a única autoridade – autoritas – concedida pelo seu Fundador (cf. Jo 10, 10-18; 13, 1-20; Mc 10, 43-45). A confusão existencial e os desvios de conduta nos contextos eclesiásticos tornam as relações, em muitos setores da instituição, marcadas por doenças do espírito, que deflagam em composições de injustiças, indigências, escândalos e lutas por poder, necessitam de reformas das estruturas e opções fundamentais que sintonizem as ações da Igreja com as orientações dadas por Jesus Cristo, seu único Mestre e Senhor. A Igreja não pode perder a convicção de Quem seja o seu caminho, a sua verdade e a sua vida (cf. Jo 14, 6).
Nessa realidade, há que ser situado esse pecado da ‘Inveja Eclesiástica’ – Invidia Clericalis. A inveja é um dos pecados capitais. Segundo o Papa Francisco, “ela é um mal investigado não apenas no âmbito cristão: chamou a atenção de filósofos e sábios de todas as culturas. Na sua base existe uma relação de ódio e de amor: quer-se o mal do outro, mas secretamente deseja-se ser como ele. O outro é a epifania daquilo que gostaríamos de ser e que, na realidade, não somos. A sua sorte parece-nos uma injustiça: certamente - pensamos - teríamos merecido muito mais os seus sucessos ou a sua boa sorte!” Quando falamos dos pecados capitais, devemos ter presente que eles normalmente aparecem interligados. Não pretendo desenvolver o sentido de todos aqui; mas é necessário pontuar essa conexão. Atentos a essas premissas, que nos lançam à tecitura da reflexão, podemos tratar deste cenário que nos envolve, enquanto eclesiásticos, considerando os desafios aos quais faço referência, como causadores e potenciadores da inveja clerical, a partir de quatro pressupostos, a saber:
1- O antropológico: O pecado original é uma verdade, que é assumida por nós, enquanto cristãos, para pensarmos as relações entre nós, com a realidade criada e com Deus (cf. Gn 4, 1-16). A sua existência é reconhecida quando nutrimos a inveja, como a insatisfação pela felicidade do irmão. A tradição cristã tem no testemunho de amor ao irmão, a outra face do amor a Deus (cf. 1Jo 4,7-8). O amor oblativo, que gera a fraternidade e o fortalecimento da comunidade é um qualificativo da ética cristã. Para ter uma síntese de tudo o que é próprio e essencial do cristianismo nos voltemos para a mensagem lapidar das bem-aventuranças (cf. Lc 6, 20-38; Mt 5, 1-12; 25, 31-40). O apóstolo Paulo é quem nos mostra que tudo é vencido e transformado pelo mistério pascal de Jesus Cristo (cf. Rm 5-6). Com esses fundamentos, podemos ter a linhas para percebermos como esse pecado capital acontece na existência humana e sacerdotal. Somos chamados a nos policiar, a nos cuida para que não sejamos sufocados pela ojeriza ao bem do outro. Quando nutrimos a ideia de que o que é do outro tem que ser nosso. Esse pecado, como os demais, nos faz o pior inimigo de nós mesmos, que temos virtudes e defeitos. É necessário que foquemos a nossa vida nos dons que Deus nos concedeu e sejamos felizes com quem somos e com o que temos.
2- O eclesiástico: O ambiente eclesiástico, em consequência da condição humana, manchada pela realidade do pecado original, com a sua necessária organização hierárquica, tende à constatação da inveja como uma das suas características ambientais. O Papa Francisco, tratando amiúde do ‘clericalismo’ como uma deformação do modo de testemunhar o poder na Igreja, nos tem feito perceber que ele é um instigador da inveja. Ele está certo. Essa mentalidade é uma praga na vida da Igreja. Assumir essa postura é desvirtuar a dimensão do serviço das estruturas eclesiásticas. A cabeça de príncipes ainda perdura em muitas consciências mal formadas, marcadas por ressentimentos e doenças da alma dentro dos presbitérios. Há uma certa ilusão do nosso papel nos dias atuais. Alguns ainda não entendemos que as únicas verdades não são mais ditas a partir dos púlpitos. O fechamento à hermenêutica dos sinais dos tempos sinaliza a negação do discernimento dos novos tempos, com seus novos desafios à evangelização.
Para estes, a história não tem presente, nem futuro; só passado. Perdemos o sentido da economia da Divina Revelação. O modelo eclesiástico de viés pré-moderno e de cristandade assumido como a fidelidade às tradições, sem adesão à Única Tradição, tem corroído a própria unidade eclesiástica. Assumindo a postura clericalista, podemos enveredar pelo carreirismo, e o carreirista não tem amigos. Ele busca e satisfaz-se com títulos. Não é suficiente o testemunho. Esse só tem sentido em função daqueles. Quando é medíocre, a sua força está na covardia e na traição da fraternidade. Afoga-se nas ilusões do ministério, quando é usado para conquistar status e obtenção de bens materiais. Torna-se um ‘funcionário do sagrado’. Com este caminho, é trivial perceber-se neles uma relação muito próxima entre prazer, ter e poder. Assim como Jesus, somos tentados por Satanás (cf. Mt 4, 1-10). As investidas são as mesmas para gerar confusão nas relações com o próximo, com a criação e com Deus. Nos meios eclesiásticos, a inveja tonifica essas distorções e confunde as mentes e os corações dos que não estão buscando a plenitude da vocação em Deus.
3- O social: Neste ponto, vem temos por objeto o que gera escândalo e descrédito público da instituição. Com o fortalecimento dos meios de comunicação e, ainda mais, das mídias digitais, o que antes era ocultado, agora com frequência é noticiado. Nada de escondido que não venha a ser revelado (cf. Lc 12, 2-3). O pior é quando alguns pensam que isso não fere a credibilidade da Igreja. As coisas acontecem e parece que tudo tem que continuar do mesmo jeito. Os lobbies são formados e arregimentados como se estivéssemos numa bolha. O amor à Igreja fica em último lugar. Para quem tem essa deformidade de consciência, ela é só um lugar onde estar-se com a intenção de ter uma vida condizente com as suas vontades, suas paixões e realizações individuais. Contudo, é próprio Jesus que afirma estamos no mundo, mas não somos do mundo (cf. Jo 17,14). O testemunho público da fé tornou-se mais necessário do que nunca. Estamos vivendo um neopaganismo e não podemos renegar a importância na sociedade, enquanto discípulos e missionários do Senhor.
4- Formativo: A formação inicial e permanente é a outra questão sempre relevante. A inveja tem seu desenvolvimento também numa formação, que desde a família, passando pelo ambiente seminarístico, até o modo de existir nos presbitérios, encontra os seus fatores de ressignificação ou de agravamento. Normalmente, quando e os superiores e as equipes de formação não têm preparo humano e pastoral para perceber essas deformidades, muitos vivem e passam pelas etapas da formação, porém não são percebidos como pessoas que necessitam ser trabalhadas. Já nos seminários e casas religiosas podemos discernir esses ‘desvios de conduta’ quando arraigados e nocivos ao processo de vida em comunidade e que, depois, poderão trazer muitos problemas ao próprio presbitério. É um sinal de imaturidade o sentimento de inveja que pode levar ao fomento de prejuízo dos demais irmãos e irmãs. No clero é comum que esse pecado instigue à busca do cancelamento do outro. É um sentimento marcado de muitas frustações e vazios históricos. Sinaliza complexos de inferioridade e imaturidade humana-espiritual.
Enfim, essas reflexões têm a finalidade de nos colocar em estado de alerta. Temos que nos trabalhar que o mais prejudicado por este pecado capital é o próprio clérigo. A conversão, a formação permanente e o fomento da amizade presbiteral não ser relativizados. As doenças do espírito podem trazer muitos sofrimentos para um Clero. O conteúdo, as possibilidades e a força da Graça, nós temos. Abramos o coração à vontade de Deus. Lutemos para que os nossos lugares sejam marcados pela vivência das bem-aventuranças. A credibilidade do que anunciamos também depende disto. Façamos a opção por esses santos propósitos. Assim o seja!