domingo, 16 de novembro de 2025

A Fornalha dos Esquecidos Quando a Justiça Confunde Punição com Redenção

Uma crônica sobre o Dia Mundial dos Pobres, penas mais duras e a ilusão da segurança

Neste domingo, enquanto a Igreja Católica celebra o IX Dia Mundial dos Pobres, os corredores do Congresso Nacional ecoam com a mesma velha promessa: punir mais para proteger melhor. O Projeto de Lei 5582/25, que endurece as penas contra facções criminosas, caminha célere pela Câmara dos Deputados, carregando nas entrelinhas uma pergunta não formulada: será que o Brasil está, de fato, disposto a encarar suas chagas, ou prefere apenas escondê-las atrás de grades mais resistentes?

A liturgia deste 33º Domingo do Tempo Comum não poderia ser mais provocadora. Malaquias anuncia o “dia abrasador como fornalha” em que “todos os soberbos e ímpios serão como palha”. É tentador, muito tentador, ver nessa imagem a justificativa perfeita para a sanha punitiva que toma conta do debate público. Afinal, quem não quer ver os “bandidos” queimando na fornalha da justiça? Mas o profeta não está falando de vingança, está falando de transformação pelo fogo da verdade, essa verdade incômoda que o Brasil insiste em não querer ver.

A Hipocrisia da Justiça Seletiva, diz que, “Bandido bom é bandido morto”, obviamente desde que não seja meu filho, meu irmão, meu vizinho. Essa é a máxima perversa que rege o imaginário da segurança pública no Brasil. Queremos a dureza da lei para o outro, aquele que não conhecemos, aquele que nasceu nas periferias que só visitamos quando perdemos o caminho no GPS. Para os nossos, sempre há atenuantes: “estava passando por um momento difícil”, “foi influenciado por más companhias”, “merece uma segunda chance”. O projeto antifacção que tramita no Congresso, apresentado pelo governo Lula, cria a figura da “organização criminosa qualificada” com penas que podem chegar a 15 anos de reclusão. É uma resposta legítima? Tecnicamente, sim. É uma solução efetiva? A história responde com um sonoro não. Desde que o Brasil começou sua escalada punitivista, há mais de três décadas, o país só fez multiplicar seus presos e suas facções. Temos a terceira maior população carcerária do mundo, e nem por isso nossas ruas ficaram mais seguras.

São Paulo, na Segunda Carta aos Tessalonicenses, é enfático: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”. Mas o apóstolo pressupõe algo fundamental, que haja trabalho disponível. E aqui reside a cruel ironia da resposta brasileira ao crime: punimos jovens que escolhem o caminho das facções, mas não construímos pontes para que escolham outro caminho.

Onde estão as políticas públicas que ofereçam, de verdade, uma alternativa? Não estamos falando de programas tímidos, de cursos de capacitação que levam a empregos inexistentes, de salários que mal cobrem o custo de uma passagem de ônibus. Estamos falando de oportunidades reais, dignas, capazes de competir com o dinheiro rápido e sujo que as facções oferecem aos jovens das periferias.

O salmista canta: “O Senhor virá julgar a terra inteira com justiça verdadeira”. Mas que justiça é essa que pune o efeito sem atacar a causa? Que justiça é essa que encarcera o jovem favelado enquanto fecha os olhos para as estruturas econômicas e sociais que alimentam o crime organizado?

A Profecia Ignorada de Lucas, no Evangelho deste domingo, traz um alerta apocalíptico: “Não ficará pedra sobre pedra”. Jesus não está falando apenas do Templo de Jerusalém, Ele está falando de todas as estruturas que construímos sobre fundações podres. E a política criminal brasileira é exatamente isso: uma construção monumental erguida sobre a areia da desigualdade, do racismo estrutural, da exclusão social sistemática. “Sereis odiados por todos por causa do meu nome”, diz Jesus aos discípulos. Os pobres do Brasil sabem bem o que é isso. São odiados quando pedem esmola, quando ocupam espaços públicos, quando ousam reivindicar direitos. E quando, desesperados, alguns deles enveredam pelo crime, são odiados com ainda mais fervor como se a sociedade não tivesse nenhuma responsabilidade na construção desses destinos.

O saudoso Papa Francisco, em sua mensagem para o Dia Mundial dos Pobres de 2024, nos lembrava: “A oração do pobre eleva-se até Deus”. Mas será que queremos ouvir essa oração? Ou preferimos o barulho reconfortante das sirenes, das operações policiais, dos pronunciamentos duros dos políticos prometendo “tolerância zero”? A oração do pobre não pede apenas comida e teto. Pede dignidade. Pede oportunidade. Pede para ser visto como ser humano, não como estatística criminal em potencial. E essa é a oração mais revolucionária e mais ignorada de todas.

Malaquias promete que “para vós que respeitais o meu nome, brilhará o sol de justiça”. Mas que justiça brilha em um país que gasta bilhões mantendo pessoas presas e centavos investindo em educação de qualidade nas periferias? Que sol de justiça é esse que ilumina apenas os bairros nobres, deixando as favelas na penumbra da negligência estatal?

O projeto de lei antifacção pode até passar. Provavelmente passará, aliás, porque punir é sempre mais fácil e politicamente mais rentável do que transformar. Mas enquanto não tivermos a coragem de olhar para as causas estruturais da criminalidade, enquanto continuarmos tratando a segurança pública como caso de polícia e não como questão de cidadania, estaremos apenas adiando o acerto de contas.

E o “dia abrasador” de que fala o profeta não será a chegada de um juiz celestial para separar justos e ímpios. Será o colapso inevitável de uma sociedade que insiste em construir muros cada vez mais altos, em vez de pontes cada vez mais largas.

“Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas”, conclui Jesus no Evangelho. Perseverar, aqui, não é aceitar passivamente a injustiça. É resistir à tentação fácil das soluções simplistas. É ter a coragem de construir um projeto de nação que não abandone nenhum de seus filhos, nem os que nasceram com sobrenome de peso, nem os que nasceram com sobrenome de favela.

Neste Dia Mundial dos Pobres, a Igreja nos convida a não afastarmos o olhar. Mas o Brasil, coletivamente, já decidiu para onde quer olhar: para as grades, para as algemas, para as penas mais longas. Decidiu que é mais confortável acreditar que o problema está resolvido quando o pobre especialmente o pobre negro da periferia, ou seja, da favela, está trancado em uma cela superlotada.

Até que um dia, talvez, nos demos conta de que a verdadeira fornalha não é a que queima os “ímpios”. É a que consome uma sociedade inteira que, de tanto fugir da justiça verdadeira, acabou construindo apenas a ilusão da segurança. E ilusões, por mais bem construídas que sejam, nunca resistem ao sopro da realidade.

Que as pedras desse templo falso caiam logo. Talvez assim, finalmente, comecemos a construir algo que preste.

"Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça" Essa é a promessa do Evangelho. Mas quantos cabelos, quantas vidas, quantos futuros o Brasil já perdeu enquanto insiste em punir a pobreza em vez de combater a desigualdade? A resposta está nas ruas, nas estatísticas, nos cemitérios. E nós continuamos fingindo que não a vemos.


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