Padre Matias Soares
Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Mirassol - Natal(RN)
Coordenador Arquidiocesano da Pastoral Universitária
Arquidiocese de Natal
Os teólogos Karl Rahner e J. Batista Metz, num diálogo sobre “o problema de Deus: salvação do indivíduo e vida de fé”, no início da década de setenta, apresentam pontos e contrapontos sobre a antropologia cristã, os desafios e necessárias reformas estruturais que precisavam ser enfrentados pela Igreja e o seu papel na cultura contemporânea. Na grandiosidade teológica de quem nos oferta as discussões, com suas ousadias de pensamentos, há uma profunda atualidade nas construções elaboradas. Com Rahner, com sua antropologia existencial-transcendental e cristocêntrica, que, por sua vez, não se distancia da mais genuína antropologia – natural - sobrenatural – teológica católica, temos o reconhecimento de que o aprofundamento da missão da Igreja passa pelo reconhecimento de quem é o ser humano como “Ouvinte da Palavra”; enquanto Metz volta-se para a relação política da Igreja com a sociedade, com sua responsabilidade crítica e propositiva à luz do mistério do “Reino de Deus” (cf. K. Rahner e B. Metz. “Cinco problemas que desafiam a Igreja de hoje”, pág. 149-175). A minha abordagem pretende colocá-los em lugares de fala diferentes e conclusões complementares, com uma atualização clarividente com o magistério do Papa Francisco.
Os debatedores começam apresentando o estado da questão que é da reflexão acerca de cinco temas emergentes no pós-concílio. Os mesmos, assumem o método dialógico para o desenrolar da abordagem. Já no início das ponderações, o teólogo jesuíta afirma que os problemas a serem tratados por eles não constituem questões centrais do Concílio Vaticano II. Aproximando-se das proposições da Gaudium et Spes, ele – Rahner – afirma que os pontos consequentes e emergenciais não foram tratados no Concílio, mesmo sendo patente que o que está a ser colocado como objeto de debate é a contínua “atualização” da Igreja, sendo “necessária à sua constante preparação antes de atacar os problemas propriamente ditos que hoje são apresentados”. Metz o acompanha, afirmando que “os problemas explicitamente tratados no Concílio não podem servir de ponto de partida para determinarmos os problemas da Igreja pós-conciliar”.
O que é tema de discursão dos dois eminentes teólogos é chave de leitura para entrarmos na eclesiologia conciliar, que é a de uma Igreja marcada por uma constante dialética de relação consigo e com o mundo; seus desafios estruturais internos e sua necessária abertura ao “admirável mundo novo”. Em Rahner, o dado antropológico transcendental sintetiza a sua dimensão existencial e identitária, com suas consequências no que virá para sua teoria dos ‘cristãos anônimos’, já que todos os seres humanos como abertos estruturalmente a serem ‘ouvintes da palavra’ podem realizar e viver, mesmo que sem o conhecimento imediato do Evangelho, o que os Padres da Igreja chamavam as “Sementes do Verbo”.
Em Rahner, o dado antropológico ilumina, tanto interna, quanto externamente, o papel da Igreja na sua interação com a cultura moderna. O que está em questão é o ser humano, que compõe a Igreja e a sociedade. Em Metz, a sua teologia política nos coloca no que serão as preocupações da Igreja com a Gaudium et Spes: a relação com o mundo, os elementos da cultura e sua inserção nestes contextos para testemunhar o Evangelho. Temos nestes autores também, duas cristologias: uma transcendental e uma escatológica. Uma que parte da formulação dogmática de Calcedônia (451), que completa a afirmação de ‘Jesus Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro Homem’, e outra que tem por base a categoria Reino de Deus, com sua realização aqui e agora.
As correntes eclesiológicas dos nossos dias não podem deixar essas percepções teológicas passarem distante das nossas preocupações com a ação evangelizadora. Toda boa prática pastoral exige uma consistente reflexão transdisciplinar. A teologia necessita deste diálogo profícuo com os demais âmbitos do conhecimento; não mais vendo-os como “servos”, e sim como parceiros. O Concílio Vaticano II é fruto das inovações teológicas da genuína Tradição Viva da Igreja – a da Sagrada Escritura, os Santos Padres – e a sua recepção posterior, que soube acolher os movimentos históricos dos “Fenômenos do Espírito Absoluto” (cf. F. Hegel). Com eles, a teologia e a ação pastoral são chamadas a caminhar concomitantemente. Os grandes teólogos do evento conciliar e seu desenvolvimento posterior, a exemplo dos supra citados, ilustraram o antes e a sequência com essa síntese salutar. Com isso, o que constatamos é que as categorias das ciências modernas tomaram o posto das construções metafisicas, que, até então, tinham o lugar para o embasamento dos discursos teológicos e a prática da pastoralidade. O pluralismo teológico e contextual ganha corpo em toda catolicidade, especialmente nas grandes universidades de teologia.
Com Rahner, a preocupação de dizer um “não” ao fato de que “já se falara, àquela época, de um Cristianismo ateu dentro da Igreja Católica, que, segundo ele, havia a necessidade de ser afastado, sem se tratar de uma mera possibilidade teórica de uma eclesiologia abstrata e de princípios”. Para Metz, a teologia política, por sua vez, “quer romper, pela crítica, o círculo em que a nossa sociedade moderna encerrou o Cristianismo: lugar de um mundo inteiramente privado, que a sociedade reservou para o alívio individual. “Esta por mim, afirma o teólogo, assim chamada ‘teologia política’ procura formular a mensagem escatológica de Jesus dentro das condições da nossa sociedade e levando em consideração a mudança de estrutura da sua opinião pública”. A teologia tem uma vocação de protagonismo, tanto na reformulação da dinâmica pastoral, quando pensa a sua identidade ministerial para o bem da Igreja, enquanto Povo de Deus (cf. LG, cap. II), como também na sua missão propositiva em inserção na cultura, com suas realidades de fronteira.
O Papa Francisco é incisivo em dizer: “saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (cf. EG, 49). Nesta admoestação do pontífice há uma simbiose com as preocupações teológicas precedentes. A saída é existencial e dialógica.
É de conversão pessoal e de promoção do Reino de Deus. Continua Francisco afirmando que “mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37). A proposta pastoral não é de uma Igreja encurvada em si mesma; mas a de uma Igreja em “saída missionária”. Aqui, Francisco deseja romper com a tentação atual, que muitos pretendem assumir de um “narcisismo eclesial”. Ele sinaliza uma negação do mandato missionário, que está no “ser” do que a Igreja e cada batizado é chamado a viver e a testemunhar.
O tribalismo eclesial não condiz com a vocação missionária da Igreja (cf. Mc 16,15). Essa responsabilidade tem que inquietar a todos. No espírito do Concílio, com bases reflexivas bem consistentes, a nossa metodologia pastoral não pode ficar aquém dos desafios que nos são impostos no contemporâneo. A mensagem do Evangelho sempre terá lugar no coração humano. Ele é proposto ao “ser humano”, que é o caminho que a Igreja tem que percorrer, em todos os tempos e espaços, contextos e realidades, templos e a casa comum – a Criação. A salvação não é só da alma, mas é da pessoa na sua totalidade – corpo, alma, razão, vontade – integrada numa ecologia integral. Com Rahner, Metz e Francisco, podemos pensar que o narcisismo teológico e eclesial precisa ser superado para que possamos ser, como cristãos e como Igreja, sacramentos do Reino de Deus, no coração da humanidade. Assim o seja!