Por Pe. João Medeiros
Volta à pauta um tema recorrente no judiciário brasileiro. Trata-se do julgamento sobre a constitucionalidade da presença de objetos religiosos em órgãos oficiais. A partir de 15/11/24, o STF julgará recurso movido pelo Ministério Público Federal – MPF, questionando a presença de símbolos religiosos naqueles espaços. No Brasil, em nome do Estado laico, tramitam processos, pretendendo a sua exclusão em repartições públicas. Invocando tal princípio, há anos, a Prefeitura de Florianópolis ajuizou ação contra uma lei, que determinava a disponibilidade de exemplares da Bíblia em bibliotecas municipais. Tempos atrás, o Presidente da Câmara Municipal de Mariana (MG) quis retirar o crucifixo do plenário da Casa. Ultimamente, o MPF (SP) protocolou um processo, demandando a retirada de símbolos sacros de recintos estatais. Vencido em instâncias judiciais inferiores, interpôs recurso no STF.
Segundo juristas e teólogos, entende-se por Estado laico aquele que não adota nenhum credo oficial, nem permite ingerência de religiões em sua estrutura. É neutro; entretanto, não ateu ou antirreligioso. Deve ser a primeira organização a garantir a liberdade de crença. A tolerância religiosa no Brasil existe graças à laicidade do Estado. Ao defini-la, nossa Carta Magna admite a liberdade de culto, assegurando assistência espiritual em hospitais públicos, prisões e quartéis, inclusive o casamento religioso com efeitos civis. Como estatuído no Art. 208, criminaliza qualquer desrespeito ou vilipêndio às crenças e aos seus símbolos. E como acontecem escárnios, disfarçados em “arte”...
Haver exemplares da Bíblia em bibliotecas não significa leitura obrigatória. Como pode o Livro Sagrado ferir o Estado laico? Ninguém é coagido a manuseá-lo. Porém, uma biblioteca que se preze, não poderá prescindir de um livro clássico, milenar, o mais impresso e lido no mundo, simplesmente por se tratar de obra de cunho confessional. A Bíblia é também uma obra histórica, cultural e literária. Há que se distinguir arte, tradição e cultura de religião ou religiosidade. O Brasil foi colonizado por cristãos ocidentais. Impossível deletar o passado, apagar a história. Procura-se preservar valores culturais afrodescendentes, herdados dos povos originários e de outras etnias. Uma sociedade democrática – como se diz a nossa – deverá cuidar do respeito à maioria, como o exige para as minorias. Convém lembrar: a maior parte da população brasileira ainda é cristã.
As intransigências supracitadas configuram intolerância religiosa, inaceitável pela Constituição brasileira vigente. É crime tipificado em lei. Verifica-se incoerência nos demandantes judiciais. Se há caça aos símbolos sagrados, especialmente os cristãos, arraigados em nossa história, ousarão retirar a estátua do Cristo Redentor, ícone da Cidade do Rio de Janeiro (declarada patrimônio cultural da Humanidade pela Unesco) e a de Santa Rita, em Santa Cruz (RN)? Teriam a audácia de demolir tais monumentos para não desagradar o Estado laico? Não é essa simbologia que envergonha e denigre o Brasil.
Na verdade, o Cristo crucificado é quem deve sentir-se constrangido com o que se passa dentro de muitas repartições públicas... Em nome dessa pretensa laicidade, iriam renomear os estados e cidades, como São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina, Natal, São Luís? Legislar para atender à gana laicista resulta em fomentar a intolerância religiosa. Arrimando-se nessa equivocada interpretação, acaba-se caindo numa sucessão de erros, ferindo tradição e história, cultura e arte, desrespeitando a religiosidade do povo. Do ponto de vista filosófico-teológico, sociológico e jurídico, é preciso deixar claro que laicidade difere de laicismo. Não obstante a sinonímia registrada por alguns dicionaristas, entende-se pela primeira a separação da Religião e do Estado, como expressa na CF de 1988.
Por ela, o Estado, em seus níveis e esferas, está proibido de definir qualquer religião como oficial. Laicismo consiste na “degeneração da laicidade”, implicando em negação ou privação do direito de manifestar publicamente a fé. Tal disposição não consta na Constituição vigente. Ao contrário, por força dela, todos os brasileiros e estrangeiros, aqui residentes legalmente, gozam também de liberdade confessional. E esta não é privilégio de um grupo. Independe de sua influência político-social ou quantidade de adeptos. Laicidade não é sinônimo de laicismo, secularização e ateísmo. Não pretende destruir e desconstruir herança histórico-cultural, tradição e religiosidade, como apregoam partidários do laicismo. Cristo separava claramente Religião e Estado: “O que é de César, devolvei a César, e o que é de Deus, a Deus” (Mc 12, 17).
Padre João Medeiros Filho
Arquidiocese de Natal
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras