Ao tratar da dimensão social da evangelização, no capítulo IV, da Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, o Papa Francisco apresenta sua preocupação com a economia e suas consequências na vida do pobre, ao dizer que:
“A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. [...]. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.” (EG n. 202)
Certo é, portanto, não podemos ignorar, que a grande mazela empobrecedora do ser humano em nossos dias, é a absurda desigualdade à qual somos submetidos, na medida em que deteriora a dignidade da pessoa humana e prioriza o individualismo em detrimento do bem comum.
A desigualdade econômica e social com a qual convivemos hoje, principalmente no Brasil, é o resultado da lógica da acumulação do capital, principalmente, na sua fase superior tida como do capital financeiro. Mas, para a percepção e o perfeito entendimento dessa lógica, assim como as preocupações do Papa, acima referidas, entendemos ser necessária uma breve reflexão a respeito da ideia central, a partir da qual a lógica do empobrecimento foi desenvolvida.
Essa ideia central, a qual nos referimos acima, é a ideia de mercado, que em seu desenvolvimento, inicialmente, nos chama atenção para a obra do filósofo Thomas Hobbes[i] intitulada “Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil”, publicada em 1651. Nessa obra Hobbes desenvolveu o que ficou conhecido como O Esquema Egoísta de Thomas Hobbs, que pode ser sintetizado na afirmação de um estado natural[ii], no qual cada comportamento humano somente possui como objetivo a mera autoconservação, ou egoísmo, de cada indivíduo, e do qual, se alguma vez se tornar possível sua realização integral, decorreria uma guerra geral e desagregadora entre os seres humanos.
Consequentemente, se os atos humanos não possuíssem outro objetivo natural que não o egoísmo, tornar-se-ia impossível a constituição de uma sociedade sem a intervenção coercitiva do Estado e, portanto, a política não seria considerada, simplesmente, como a atividade ordenadora de uma sociedade que civil extrai seu próprio fundamento e seu próprio princípio de uma tendência natural e espontânea dos homens no sentido da construção de um tecido de relações recíprocas estáveis. A política converter-se-ia no meio pelo qual todos os homens seriam encaminhados pelo temor, como contrapartida a uma tendência natural à desagregação. Ou seja, a política chegaria a ser a própria fonte da vida social. Portanto, não existiria uma sociedade civil que, em sua ordem natural, precederia, logicamente, ao Estado; ao contrário, seria, exatamente, em virtude da constituição desse Estado que a sociedade se formaria.
Consequentemente, a sociedade subsistiria apenas enquanto os homens renunciassem à própria liberdade, ou seja, enquanto os homens renunciassem às suas próprias tendências destrutivas em favor da autoridade estatal, qualquer que fosse a forma pela qual esta venha a se configurar constitucionalmente.
É importante observar que, em síntese, o esquema de Hobbs, na realidade configura-se como um pacto social que garantiria a harmonia entre os homens, sob a tutela de um estado absolutista.
Em 1681, John Locke[iii] publicou o seu principal livro intitulado O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, no qual assegura que é da natureza do homem um estado essencialmente bom e não egoísta, como anunciara Hobbs, enquanto a existência de contrastes, independente de uma perversidade natural, resultaria de uma espécie de avareza da natureza física. Ou seja, a guerra geral, que decorreria do egoísmo, alegada por Hobbs, só poderia ocorrer no caso de defesa da propriedade, portanto fazia-se necessário um estado garantidor da propriedade conquistada através do trabalho, o que fazia da propriedade privada o único argumento da moral da lógica econômica. Logo, O Estado teria suas funções limitadas à contínua conservação da ordem da sociedade civil, não tendo, assim, condições de superar os limites impostos pela natureza física (egoísmo), do qual deriva a possibilidade de desordem, o que, por sua vez explicaria a existência dos excluídos, como um fenômeno não eliminável, por não possuírem a menor capacidade de conquista de uma propriedade por intermédio do trabalho. Assim, a lógica do Estado liberal de Lock resume-se na convivência entre uma bondade natural e uma desigualdade natural.
Com Adam Smith[iv] o dualismo psicológico do ser humano (ser bom e avarento), já antevisto por Locke e desenvolvido pelos filósofos inglese, tornou-se o problema mais importante do discurso filosófico. Assim sendo, Smith separou o comportamento humano em duas áreas: de um lado, a moral, segundo a qual a utilidade[v] dos indivíduos e da sociedade seria obtida através do exercício da simpatia e, de outro lado, a econômica na qual, a mesma, utilidade seria obtida através do exercício do egoísmo. Neste caso, para que fosse evitado o conflito entre as duas faculdades, o ser simpático e o ser egoísta, seria necessário que ninguém, na busca de seus próprios interesses, impedisse aos demais a obtenção de seus respectivos interesses, ou seja, todos seriam livres para usufruir de suas propriedades, desde que não prejudique alguém. Por conseguinte, existiria o direito de comer, de estudar, de trabalhar, mas não se contemplaria o direito ao alimento, ao lugar de trabalho, ao estudo, razão pela qual, em relação à comunidade, a pessoa tem o direito de não ser impedida, mas não tem o direito de ser sustentada e que toda ajuda ao mais fraco não seria exigível pelo mais fraco como direito, mas só possível de ser implorada como esmola. Dessa forma somente a convergência dos interesses individuais promoveria a riqueza social, sendo o egoísmo reprimido pela competição, enquanto a sociedade seria conduzida pela mão invisível de um deus benevolente: O MERCADO.
Voltando ao que diz o Papa Francisco a respeito da necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza, vemos, de imediato, que suas preocupações são fundamentadas nas consequências sobre a vida dos pobres que esse mercado divinizado, em sua lógica, produz:
“Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. [...]. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando, assim, novos excluídos.” (EG n. 204)
É preciso dizer, no entanto, que o Papa não está a condenar o mercado como mecanismo para a satisfação das necessidades materiais. O Papa está conclamando a todos nós a vermos, no funcionamento do mercado, uma tendência natural à concentração, nas mãos de pouco, da riqueza, socialmente, produzida. Ou seja, o agir livre do deus mercado pode até fazer a economia crescer, pode até fazer crescer o PIB, mas não inclui, não distribui, igualitariamente, a riqueza produzida, ao mesmo tempo em que tende a aumentar o contingente de empobrecidos e sem direitos de exigir ajuda, porém, sendo ludibriados por um assistencialismo barato, enganador e alienante.
Assim como o Papa, como seguidores de Jesus Cristo, que não pactuava com os poderosos, não devemos aceitar, como normais, novas estratégias econômicas e financeiras, como as utilizadas pelos bancos, que em nome da defesa contra o fantasma da inflação, exigem elevar a taxa de juros, desaquecendo a economia, pois dificulta os investimentos e o consumo enquanto se apropria da riqueza acrescida, principalmente pelo aumento do serviço da dívida pública. Não podemos esquecer, também, que esse engodo da elevação da taxa de juros, ao desaquecer a economia é o que reduz o mercado de trabalho e cria, consequentemente, novos excluídos.
Portanto, “resolver as causas estruturais da pobreza”, como nos conclama o Papa, é entendermos e buscarmos, responsavelmente, regular esse mercado divinizado, o que
“requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo.” (EG n. 204)
[i] Filósofo nascido na Inglaterra em 1588 e falecido em 1679, tendo testemunhado as mudanças políticas inglesa durante as revoluções burguesas.
[ii] No estado de natureza, segundo Hobbes, os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las. Conforme esse autor, os homens são maus por natureza (o homem é o lobo do próprio homem), pois possuem um poder de violência ilimitado.
[iii] John Locke nasceu em 1632 e faleceu em 1702, na Inglaterra. Sua vida discorreu no mesmo período da Revolução Inglesa que redefiniu o poder monárquico britânico.
[iv] Filho de um comissário da alfândega, nasceu na cidade portuária de Kirkaldy, em 1723, na Escócia. Estudou Ciência Moral e Política e Línguas. Foi professor de Filosofia Moral por 12 anos, no Glasgow College. Suas principais obras foram: The Theory of Moral Sentiments (1759) e An Inquiry into the Nature and Cause of the Wealth of Nations ( 1776).
Arquidiocese de Natal