sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Quintais agroecológicos, economia familiar e segurança alimentar e nutricional

Projeto Bodega Solidária tem sido instrumento que vem motivando vários 
processos que garantem a distribuição de alimentos de qualidade, 
mas também colaboram na renda e ajudam as famílias 
envolvidas a se tornarem sujeitas e protagonistas
 na superação de suas próprias vulnerabilidades

A EXPERIÊNCIA DAS BODEGAS SOLIDÁRIAS

O mercado neoliberal vem ao longo dos anos transformando as pequenas propriedades, agregando-as ao agronegócio e incentivando a monocultura. Esse sistema faz com que os agricultores percam sua diversidade de plantas e animais, cujos alimentos, cada vez mais paupérrimos em qualidade, transgênicos e cheios de veneno, provocam o adoecimento de uma população cada vez mais susceptível aos vários tipos de câncer e outras enfermidades.

Nesse contexto, o SAR vem incentivando algumas práticas que possam favorecer e fortalecer uma nova mentalidade. Práticas em que o “sítio”, a pequena propriedade, possa produzir o que as famílias necessitam para o seu consumo diário, qualificando assim sua alimentação. A diversidade produtiva pode significar uma “mesa farta”, não apenas em quantidade, mas em qualidade, com alimentos ricos em nutrientes e livres de agroquímicos. É nessa perspectiva que surge a ideia de se fortalecer os quintais e os sistemas agroflorestais agroecológicos (Safas). A partir da experiência do “Projeto Bodega Solidária”, fomos dando passos importantes, além da distribuição de alimentos, para tornar as famílias em processo de vulnerabilidade sujeitas de práticas libertadoras, inclusive na produção e consumo de alimentos de qualidade.

Integrantes do projeto Bodega Solidária (Arquivo SAR)

O Projeto Bodega Solidária surgiu em razão da pandemia de Covid-19, quando a cooperação internacional, por meio da ADVENIAT e da MISEREOR/Alemanha, apoiou um projeto de distribuição de cestas básicas. A equipe do SAR começou então naquela época uma discussão de, como em plena pandemia, poderia ser feito um trabalho que unisse distribuição de alimentos e a formação das famílias em situação de vulnerabilidade em ao menos dois aspectos: a importância da segurança alimentar e nutricional com alimentos sem agroquímicos e um processo de educação política que levasse as famílias a se questionarem e perceberem as causas e as raízes do seu empobrecimento. Concomitantemente, as comunidades/paróquias envolvidas nesse trabalho e motivadas pelo próprio SAR iniciaram um processo de “conscientização” para que as pessoas individualmente ou coletivamente a partir dos seus grupos e movimentos, empresas entre outros, se abrissem à solidariedade diante da realidade de um povo que estava morrendo atacado pelo vírus e pela fome.

Surgiram então experiências que continuam como o da troca solidária, grupos que se organizam e fazem bazares, campeonatos e atividades culturais diversas com o objetivo de angariar recursos e alimentos para as famílias cadastradas nas bodegas locais.

Percebeu-se, nas reuniões de formação com as famílias envolvidas no Projeto Bodega Solidária, que havia um espaço aberto e propício para um trabalho de qualificação, não só para a produção de alimentos, mas até mesmo de manufatura de produtos alimentícios que pudessem gerar entre elas mais segurança alimentar e nutricional, incluindo também processos de gestão, comercialização, crédito solidário, entre outros.

A experiência da entrega de sementes de hortaliças, já na primeira formação com as famílias da Bodega Solidária, com a tarefa de trazerem no próximo encontro algo que mostrasse um resultado concreto (desde uma foto, um vídeo ou mesmo uma planta num pequeno vaso), foi mostrando a capacidade e o potencial dessas famílias de retomarem um processo produtivo que proporcionasse não somente a sua segurança alimentar e nutricional mas novas oportunidades, inclusive de geração de renda. Nesse sentido, a Bodega Solidária foi dando passos para ser um novo espaço produtivo, de geração de alimentos e até de comercialização dos produtos produzidos pelas comunidades. Foram surgindo então pequenas experiências de famílias que começaram a produzir em seus pequenos quintais, em “cascos” de geladeira velha, “palanques” e vasos quebrados alguns alimentos como “tempero verde” (coentro e cebolinha) para vender e ajudar na economia familiar.

Isso, de forma tão pequena e simples, foi comprovando que é possível investir cada vez mais em coisas concretas que deem suporte às famílias vulnerabilizadas. De igual modo, tratando-se do investimento nos processos produtivos diversificados, sem agroquímicos, valorizando as sementes crioulas e livres de transgenia, podemos interligar várias ações, inclusive para reforçar a economia popular alternativa. Nessa perspectiva abriu-se uma outra discussão que a Bodega Solidária poderia ser também um instrumento para que as famílias pudessem ampliar sua produção por meio dos quintais produtivos e acesso a pequenos créditos, motivando os já conhecidos “fundos solidários” ou “caixinhas comunitárias”.

A partir dessa dinâmica, pode-se enxergar o Projeto Bodega Solidária como uma tecnologia social que é:

– Em primeiro lugar, um espaço de vivência de confiabilidade mútua (entre o núcleo gestor e as famílias participantes do projeto). O nome “Bodega Solidária” foi para resgatar as antigas experiências vividas nas comunidades em que o “freguês” ia comprar ao bodegueiro e confiava que este não adulterava a “caderneta” onde ficavam anotadas as compras do mês até o pagamento e, por outro lado, o bodegueiro confiava que o seu “freguês” não iria caloteá-lo nas compras, pagando no prazo acordado.

– Segundo, a bodega é lugar de formação permanente tanto das famílias como dos integrantes do núcleo gestor e da comunidade, de forma multidisciplinar (desde a alfabetização das “letras” e política, passando pela organização coletiva, assistência técnica diversificada, produção, gestão, comercialização, crédito solidário, entre outros). Nesse sentido, inclusive motivados pelos alunos e alunas de Serviço Social que fazem parte de uma Incubadora da UFRN (INICIES), começou-se a experiência do “papo de bodega”. Um pequeno folheto impresso com informações importantes e de forma bem simples, com caricaturas, figuras e fotos para ajudar na reflexão de temas escolhidos pelas famílias envolvidas e os respectivos núcleos gestores.

– Terceiro, a bodega é um espaço de troca de experiências vivenciadas pelas famílias desde as “trocas solidárias”, produção diversificada (plantio e manufatura), comercialização de produtos etc. Importante destacar que cada bodega foi assumindo um rosto próprio de acordo com a sua realidade. Não há “camisa de força” para que a bodega funcione. Por isso, há umas “dando passos” mais largos e outras, menos, mas de acordo com a sua realidade e contexto.

– Quarto, a bodega passou a ser um instrumento de fomento à solidariedade na comunidade, envolvendo atores e atrizes diversos. Nesse sentido, destaca-se o papel dos núcleos gestores (formados por agentes pastorais e sociais, lideranças comunitárias e pelas próprias famílias envolvidas na bodega) e, sobretudo, das paróquias e outras igrejas fomentando o envolvimento da sociedade local na busca de parcerias. Isso tem motivado a vivência da solidariedade efetiva, o que praticamente tem mantido as doações de alimentos para as famílias cadastradas em cada bodega.

– Quinto, a bodega solidária é veículo capaz de construir pontes, redes, interligando-as às tantas outras ações comunitárias, sendo um espaço de participação efetiva, não somente em relação à distribuição de alimentos, mas também na luta pela manutenção e funcionamento de algumas políticas públicas, colaborando também no controle social em alguns municípios.

– Por fim, a bodega em cada local tem feito “circular dinheiro” nos municípios de origem por meio das compras dos alimentos para serem distribuídos, inclusive da agricultura familiar e da pesca artesanal, o que já é por si algo muito positivo, no sentido de valorizar os pequenos agricultores, agricultoras e pescadores e pescadoras gerando renda para estes/as.

Participam atualmente do projeto Bodega Solidária cerca de novecentas famílias. São treze núcleos em onze municípios/paróquias. Pelo menos seis desses municípios vêm investindo de forma mais organizada nos quintais agroecológicos[1] e/ou nos SAFAs (sistemas agroflorestais agroecológicos), como parte integrante dos objetivos da Bodega Solidária na perspectiva da segurança alimentar e nutricional permanente, que gera outras situações favoráveis ao desenvolvimento local sustentável e de “combate” ao próprio sistema capitalista que destrói o ecossistema e a vida como um todo, para a concentração de riqueza nas mãos de poucos e o empobrecimento da esmagadora maioria. Destacam-se aqui as finanças solidárias e a economia popular solidária como algo integrante do processo para a busca de soberania dessas famílias e para que elas se tornem protagonistas das suas próprias existências.

Alimentos recolhidos pelo projeto Bodega Solidária (Arquivo SAR)

O Projeto Bodega Solidária tem sido esse instrumento que vem motivando vários processos que garantem a distribuição de alimentos de qualidade, mas também colaboram na renda e ajudam as famílias envolvidas a se tornarem sujeitas e protagonistas na superação de suas próprias vulnerabilidades. Nesse sentido, o SAR vem incentivando cada vez mais a organização dos quintais agroecológicos. Sabemos que os quintais agroecológicos fazem parte das pequenas propriedades que estão inseridas na dinâmica da produção familiar. É no quintal próximo à casa que a família planta e cultiva de modo diverso, desde as hortaliças, plantas alimentícias, frutíferas, leguminosas, ornamentais, medicinais, até a criação de pequenos animais, como galinhas, guinés, porcos etc. Além da diversidade que imita a própria natureza, o quintal agroecológico também gera menos gastos de energia, pois, tudo está ali, próximo à casa, não necessitando ao agricultor(a) gastar tanta energia percorrendo longos caminhos para acessar seus alimentos, diariamente. É nesse espaço que os membros da família desempenham suas atividades de forma integrada, destacando-se, sobretudo a participação da mulher como colaboradora na composição da diversidade de plantas e espécies que compõem o quintal agroecológico. Vale destacar que o quintal é sempre rico em fertilidade pois é ali que está todo o material orgânico que é proveniente das sobras de alimentos e pela ciclagem de nutrientes das folhas das diversas plantas que se decompõem (folhas das árvores, palhas, cinzas do fogão a lenha ou de carvão, estercos das galinhas, porcos e outros animais, além dos galhos apodrecidos oriundos de podas de formação e podas produtivas).

Esses insumos favorecem a ação dos micro-organismos melhorando a composição do solo. Assim, as plantas crescem saudáveis e dão uma boa produção, colaborando para um maior equilíbrio do controle biológico, evitando assim as pragas. Vale a pena também destacar um aspecto importante que é a geração de trabalho para os integrantes da família, em geral lideradas pelas mulheres, envolvendo adolescentes e idosos, pois é um espaço onde todos participam, existindo uma corresponsabilidade e troca de saberes de forma constante. No quintal, pode-se ouvir a voz da sabedoria popular transmitida pelos mais velhos na prática do trabalho diário. Também podemos perceber que ali não existe uma ordem de cultivo. É como na floresta, onde as plantas vão crescendo e conquistando o seu lugar no espaço. De casa é possível observar qual planta ou fruto está no ponto de colheita, bem como verificar a ocorrência de algum desequilíbrio ou praga.

O quintal agroecológico pode gerar renda extra e aumentar a renda familiar por meio da comercialização do excedente, que em geral é levado às feiras livres e, onde há uma mínima organização, à feira agroecológica. Esse é o caso do Assentamento Modelo II, em João Câmara (RN), que vem realizando feiras agroecológicas com alimentos advindos dos quintais de 35 famílias inseridas no Projeto Bodega Solidária. Em João Câmara, no centro da cidade, todas as quartas-feiras um pequeno grupo de agricultores(as) familiares realizam a “Feira Agroecológica do Mato Grande”, que já se tornou uma referência na cidade. Multiplicam-se as experiências das feiras agroecológicas noutras comunidades e territórios com os alimentos da agricultura familiar, dos quintais agroecológicos e dos SAFAs.

Podemos também destacar que o excedente do quintal agroecológico nem sempre é comercializado. Muitos tomam de parte do excedente do quintal agroecológico (como a sobra de tubérculos, legumes, frutas e verduras) e são transformados em alimento para aves e pequenos animais. Por sua vez, estes nos fornecem carnes e ovos que são fontes ricas de proteínas e importantes na segurança alimentar e nutricional. Outro retorno importante é o que as aves e demais animais na propriedade fornecem para a fertilidade do solo, que são os seus estercos.

Concluindo, podemos afirmar que o projeto Bodega Solidária é bem maior que um espaço de distribuição de alimentos. É um instrumento importante de formação, de resgate da cidadania, de exercício da solidariedade, de fomento à produção de alimentos de qualidade e livre de agroquímicos, destacando-se a reorganização dos quintais produtivos que geram segurança alimentar e nutricional, para uma maior e melhor qualidade de vida a partir dos princípios agroecológicos e do bem viver.

Francisco Adilson da Silva
é diácono da Arquidiocese de Natal e coordenador executivo do Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR/RN).






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