A sociedade vive um dilema, próprio do maniqueísmo. Este se fundamenta numa concepção filosófico-religiosa, oriunda na antiga Pérsia, amplamente difundida no Império Romano, nos séculos III a V. Consiste basicamente em afirmar a existência de um conflito intransponível entre os reinos da luz e das trevas. Aos seres humanos caberia o dever de ajudar a vitória do Bem, por meio de práticas ascéticas. O propagador de tal doutrina foi Mani ou Manes, nascido em 216 d. C. Defendia um dualismo antagônico. Segundo ele, há uma oposição permanente entre claridade e sombras. Suas ideias tiveram profunda influência em sua época, a tal ponto de Santo Agostinho, antes de sua conversão, tê-las adotado. Posteriormente, o Bispo de Hipona opôs-se a tal pensamento. No século XII, essa teoria persa voltou à tona. Desta vez, na França. Os novos maniqueus pertenciam à seita dos cátaros (ou albigenses).
Periodicamente, tal teoria emerge aqui e ali, como concepção e estilo de vida ou prática social. Atualmente, ressurge em partidos políticos, alimentados por uma ideologia intolerante. O Brasil divide-se em dois grupos semelhantes ao óleo e à água. Encontram-se, mas não se misturam. O oponente político é visto não como adversário, mas como um inimigo perigoso, que deve ser eliminado a qualquer custo. Quem está do lado contrário só tem defeitos, representa perigo e por isso necessita ser exterminado sem hesitação. O outro é um demônio. “O inferno são os outros”, afirmava Sartre. Para os maniqueus do Brasil atual, apenas a sua maneira de pensar é correta, mesmo que muitas vezes apresente uma pletora de sofismas, contradições, narrativas e inverdades. Apenas, os seus partidários são infalíveis e intocáveis. A sociedade fica, então, dividida. E o pior: quanto mais o outro (o inimigo a ser aniquilado) fracassar, melhor, pois será a prova e o triunfo de “sua verdade”. O amor à pátria e o bem-estar social tornam-se algo diluído e distante, relegado a um plano inferior.
Muitos são contraditórios e ilógicos, pondo nos lábios um pseudo discurso democrático. A intransigência e intolerância são negações da democracia. Há dificuldade e ingente aversão em aceitar e conviver com quem pensa de modo diverso. Isto ocorre nos parlamentos, em colegiados do judiciário, nos círculos acadêmicos, religiosos e demais instituições. Inconscientemente, almeja-se uma sociedade em que todos deveriam pertencer ao mesmo partido político, professar idêntica religião, ser do único time de futebol e ter igual modo de pensar. Os sistemas totalitários, tanto de direita, quanto de esquerda, alimentam-se dessa utopia. Desconhecem o ensinamento cristão, contido na Epístola aos Romanos: “Como num só corpo temos muitos membros, cada qual com uma função diferente” (Rm 12, 4).
Viver exige saber conviver. “Homem algum é uma ilha”, escreveu Thomas Merton. O diferente amplia a visão, levando as pessoas a um melhor autoconhecimento. Conviver é respeitar, ter a capacidade de ouvir para se enriquecer com outras maneiras de pensar e ver o mundo. Quão monótona e deprimente seria uma sociedade formada de robôs! Os dias atuais estão mostrando que o maniqueísmo continua vivo e atuante. E, como todo “ismo”, tende a ser ideológico e empobrecedor. O Brasil, que se diz cristão, parece ignorar as palavras do apóstolo Paulo: “De fato, o corpo é um, embora tenha muitos membros” (1Cor, 12, 12).