terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

“Vá se queixar ao bispo” artigo semanal do Pe. João Medeiros

Eis uma expressão, ainda ouvida ou lida, aqui e acolá. É anterior à fundação do Reino de Portugal. Historiadores, especialmente aqueles da área do Direito, relatam que a máxima já foi ordenamento jurídico na Península Ibérica, entre 480-711. Constava do Código Visigótico (Livro II, Título II, Item
XXVIII). Permitia às pessoas, inconformadas com o veredicto de tribunais e magistrados, dirigir-se ao bispo em grau recursal. O pleito era possível, quando os interessados consideravam a sentença proferida, em discordância com o regramento em vigor. Infere-se, portanto, que o bispo representava justiça, sentimento humanitário para a população.

Segundo certos autores, o jargão surgiu, entre nós, no século XVII, na cidade do Rio de Janeiro. À época, os comerciários fizeram campanha, exigindo que as lojas fechassem aos domingos e dias festivos para o cumprimento do mandamento religioso. Naquele tempo, por força da Concordata entre a Santa Sé, Portugal e posteriormente o Brasil Império, o catolicismo era religião de Estado. Daí todos deveriam guardar o Dia do Senhor. Os lojistas promoveram manifestações públicas e passeatas, ameaçando fazer greve. Os patrões mantiveram-se intransigentes. Como última tentativa levaram um abaixo-assinado a Dom José de Barros Alarcão, prelado do Rio de Janeiro (1680), solicitando intercessão junto ao Rei de Portugal, Dom Afonso VI. Desejavam que editasse uma lei específica, mediante a qual os fiéis trabalhadores pudessem cumprir os preceitos dominicais e nos dias santificados. Pode-se deduzir a presença da Igreja, enquanto última instância de resposta contra a violação dos direitos humanos.

Para Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro metropolita de Maringá (PR), o adágio remonta ao Brasil colonial. Na época, vigorava o regime do Padroado. Consequentemente, a Igreja Católica, por meio das dioceses, detinha certas atribuições e prerrogativas no foro civil. “Va queixar-se ao bispo” tornou-se popular no Brasil seiscentista e setecentista. A autoridade diocesana chegava a gozar de competência legal até para mandar prender rapazes que “ofendiam às donzelas” e recusavam as núpcias. Até bem pouco, era costume algo semelhante no Seridó. Quando alguma moça era “desonrada”, conduziam-na imediatamente à presença do dignitário eclesiástico para que se providenciasse urgentemente o casamento. 

Isso era motivo de força maior para a dispensa dos proclamas canônicos. Enquanto chanceler da cúria diocesana de Caicó, fui testemunha de vários acontecimentos dessa ordem. Convém lembrar que no Brasil concordatário, os prelados eram investidos de alguns poderes administrativos e jurídicos. Assim, era natural as pessoas verem no pastor a porta para a solução dos seus problemas pessoais mais prementes. A figura episcopal era respeitada por todos, sobretudo porque acreditavam ser ela a legítima representante de Deus entre os homens, capaz de oferecer luzes e apontar caminhos para seus sofrimentos. “Eu vi a humilhação de meu povo e ouvi o seu clamor” (Ex 3, 7). Poder-se-ia pôr tais palavras nos lábios dos antístites daqueles tempos.

Nessa mesma direção, o jornalista e professor Jairo Faria Mendes apresenta sua versão para o axioma. Menciona que em Portugal – e nos seus territórios ultramarinos – em razão do Padroado, a autoridade diocesana exercia também a função de Ouvidor da Coroa, responsável por receber as queixas dos cidadãos. Assim, no Brasil colonial, os pontífices tinham ainda o encargo de ouvir as lamúrias e o relato de problemas materiais dos fiéis. Isto deu azo à difusão do aforismo “Vá se queixar ao bispo”. Hoje, os dignitários episcopais não estão mais revestidos de jurisdição civil. É importante frisar que, à época, a história registra a figura do bispo humanitária, paternal, solidária e clemente. 

Atualmente, a quem a população sofrida, injustiçada e desesperançada irá desabafar? Quem ouvirá seus rogos contra desmandos públicos, injustiça, fome, desemprego, violência, assistência precária de saúde, insegurança, falta de habitação, água e vergonha? Quem haverá de interceder, quando se adoecer de arboviroses e epidemias? Outrora, o bispo cuidava de tudo aquilo que o Estado negligenciava ou era incapaz de resolver. Por sua compreensão, senso de justiça e caridade, ele tinha condições reais de solucionar impasses. Nos dias atuais, necessita-se de alguém – máxime entre executivos e legisladores – sobre quem se possa afirmar: “Teve compaixão da multidão [sofrida e sem esperança], pois era como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36).

Padre João Medeiros Filho pertence à Arquidiocese de Natal, e está emérito

ÚLTIMAS NOTÍCIAS