segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

REFLETINDO SOBRE A QUARESMA

Por Pe. João Medeiros

Em português, a palavra Quaresma é uma forma sincopada do termo latino “quadragésima”. Este, por sua vez, é o número ordinal de “quadraginta”, significando quarenta. A liturgia católica costuma recorrer a símbolos. Estes são abertos e ricos em interpretações, enquanto as palavras são, por vezes, limitadas. Na Quaresma, partindo da simbologia numérica, usual na cultura hebraica, a Igreja recorda-nos os quarenta anos de caminhada do Povo de Deus em busca de Canaã, os dias e noites esperados por Moisés para receber o Decálogo. 

Lembra ainda idêntico período vivido por Cristo, antes de ser tentado. Ela convida-nos a uma maior consciência da nossa condição de filhos de Deus e nosso compromisso com o Evangelho. Proporciona um retiro aos cristãos a fim de realizar uma revisão de vida. Não se trata apenas de tempo litúrgico. Representa igualmente momentos importantes de nossas existências, nos quais devemos aprofundar, com o auxílio da graça divina, nossa vivência cristã. E para isso, é indispensável defrontarmo-nos com nossos erros e virtudes. Conclama ao despojamento interior para o renascimento pela escuta atenta de Deus. Sua Palavra ilumina nossa vida e transforma nosso íntimo.

O tempo quaresmal exorta os fiéis ao jejum e à conversão. Atualmente, na administração pública e linguagem biomédica fala-se muito em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que sejamos capazes de eliminar os excessos do desamor e egoísmo, da vaidade e injustiça. Nos dias de hoje, enfatiza-se o culto do corpo. Várias modalidades de exercícios físicos são praticadas. Jejuar é como malhar a alma, banir o que lhe é supérfluo ou nocivo para dar lugar à fome de Deus.

No primeiro domingo do período quaresmal, lê-se o episódio da tentação de Jesus. Somos instados a refletir sobre o sentido do deserto. Este reveste-se de significado especial na Sagrada Escritura e na espiritualidade cristã. À primeira vista, não é habitual se deparar ali com seres vivos. Sua imensidão e silêncio levam-nos a algo mais profundo: a descoberta de Deus. Este é a única vida que se pode sentir na vastidão despovoada. 

Os fiéis veterotestamentários, antes de chegar à Terra Prometida, passaram também pelo deserto. Este precede qualquer experiência mística, sendo, antes de tudo, um estado de espírito. Cristo veio estabelecer o Novo Testamento para a humanidade. Teve de enfrentar o deserto: ícone de nossa fragilidade, impotência e solidão. Sentimo-nos, não raro, abandonados, tristes e sozinhos em nossos sofrimentos, angústia, perplexidade, instabilidade e tribulações. Isto representa a figura de Cristo, ao ser provado pelo demônio.

O texto de Marcos tem uma peculiaridade. Não cita a quantidade de tentações, como os de Mateus e Lucas. O autor do segundo evangelho restringe-se a afirmar que Cristo foi conduzido ao deserto e “aí tentado por Satanás” (Mc 1, 13). As provocações e provações, sofridas por Ele, representam a realidade humana. O materialismo, o consumismo, gerando miséria e dependência, a exploração dos mais fracos permanecem fazendo vítimas. 

A manipulação religiosa aproveitando-se da fé ingênua do povo simples, em benefício de pseudo líderes e grupos inescrupulosos, constitui-se numa tentação que fala bem alto na sociedade hodierna. A idolatria do poder, passível de proporcionar corrupção, marginalizando ou excluindo indefesos e necessitados, continua sendo a expressão do ideal demoníaco. Há uma série de novas e falaciosas atrações, procurando iludir o ser humano e estabelecer o reino de Satanás, e não o Reino de Deus e do Amor. Diante disso, entende-se o apelo do Mestre: “O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15).

Há outro detalhe no relato de Marcos: “[Jesus] Vivia entre animais selvagens e os anjos O serviam” (Mc 1, 13). Ele veio mostrar a harmonia da criação, revelando a verdadeira ecologia. Da narração de Marcos, infere-se uma metáfora: ao ceder às tentações do demônio, o homem mostra-se bestializado. O poder, o ter e o prazer poderão nos tornar alienados e presunçosos. Mas, Cristo vencendo o demônio, assegura-nos que Ele veio aniquilar a indiferença, a injustiça e a violência. Cada um conhece o seu deserto e as suas seduções. O Mestre ensina-nos como superar tudo. “Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33), assevera-nos o Salvador.







Padre João Medeiros Filho é membro do clero da Arquidiocese de Natal

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