sábado, 20 de julho de 2024

O sonho de uma Igreja do avental, comunidade encarnada na base e nas periferias

Por Sônia Gomes de Oliveira

Sônia Gomes foi uma das mulheres que participaram da Assembleia Sinodal do Sínodo sobre a sinodalidade, em Roma, entre os dias 4 e 29 de outubro de 2023. Nesta entrevista, ela conta detalhes do evento e fala sobre os desafios para uma Igreja sinodal, algo que não é novo, mas sempre encontrou entraves. A presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB) revela que o método de trabalho na assembleia denota que estamos vivendo um processo de “conversão no Espírito, que nos fazia (faz) dialogar de igual para igual, leigos, bispos, padres, religiosos, num clima de comunhão e caminhos”. Ela ainda destaca o desafio da ministerialidade, “especialmente das mulheres nas comunidades”, relacionado a “romper o clericalismo para vencer o autoritarismo, trazendo a eclesiologia do serviço na missão, o olhar para os pobres e para as periferias”.

Sônia, poderia nos contar como foi participar da Assembleia Sinodal do Sínodo sobre a sinodalidade?

Não tenho palavras para descrever. Primeiro, a alegria de ser uma convidada para estar ali – diante da realidade de [nós, mulheres] sermos muito dos bastidores da Igreja e eu ser uma mulher do interior –, para estar nesse momento de abertura na Igreja. É muita alegria e, ao mesmo tempo, muito desafiador, até porque recebemos muitas críticas. Mas também uma grande responsabilidade está na representatividade da Igreja do laicato no Brasil. Este [o laicato] que é visto como um sujeito de função menor. Mas o convite de participar do Sínodo dos Bispos, com direito a voz e voto, já é um exemplo de vivência da sinodalidade que hoje o papa Francisco tem insistido em nos pedir. A impressão que tive ali, primeiro, foi de uma expressão das forças vivas da Igreja e que fomos convocados/as a caminhar juntos como batizados, sem maiores ou menores, [e sim] iguais. Que o Sínodo não era somente um evento, mas um processo! Depois, a pluralidade que havia ali – eu, vindo do sertão norte-mineiro, vendo ali a riqueza de culturas, ritos, dons, carismas, e tudo em busca da comunhão, da unidade da Igreja, fiquei pensando: que força o papa tem de conseguir unir o povo de Deus junto dele, expressão da Igreja toda povo de Deus. Depois, ali todos tinham um testemunho de vida, de experiências, de vivência. E olhe que estávamos (estamos ainda) num contexto de guerra e o Sínodo tratava da guerra; rezávamos pelo seu fim, mas também buscávamos ali a unidade, o diálogo. Isso foi muito forte para mim.

Depois, a profundidade espiritual que o Sínodo teve. Iniciamos com um retiro, como forma de purificação do nosso “eu” e de nossas pautas pessoais. A centralidade do Sínodo era espelhar-se na Trindade santa – três em um –, buscando a unidade. Depois, a centralidade que nos unia ali: a missão da Igreja, a centralidade em Jesus, o diálogo e a escuta, a formação permanente, a inclusão dos mais esquecidos e o romper com estruturas que não dialogam com a realidade, o retorno à vivência da Doutrina Social da Igreja. Por fim, creio que a metodologia, com as mesas circulares, o método de conversão no Espírito, que nos fazia dialogar de igual para igual, leigos, bispos, padres, religiosos, num clima de comunhão e caminhos. Por mais que não estivéssemos acostumados a escutar o outro, todos éramos obrigados a ouvir. Então, creio que a experiência de uma Igreja sinodal foi ali vivenciada.

Sobre o processo sinodal na Igreja no Brasil, o que você destacaria de importante para a sessão em Roma?

Penso que o processo de escuta sugerido pela equipe nacional foi bom; foi uma pena que nem todas as dioceses, paróquias, pastorais e movimentos aderiram e fizeram o processo de escuta acontecer ou, de fato, escutaram a todos. Mas creio que o relatório-síntese que o Brasil produziu foi muito utilizado, apontando ações e questões que também saíram em outras conferências e serviram para fortalecer pontos de convergência que precisavam avançar e ser discutidos. O relatório-síntese do Brasil vem também ao encontro da realidade da América Latina e foi um dos relatórios que trouxeram, na fase continental – que aconteceu até mesmo aqui no Brasil, no mês de março de 2023 –, temas como juventude, clericalismo, mulheres, abusos na Igreja e também os temas da ministerialidade e da formação em todos os níveis, das estruturas de Igreja que já não dialogam com a realidade de nosso tempo. Creio que o trabalho da equipe de síntese foi bem-feito. Creio que o grande desafio foi o compromisso de fazer esse instrumento chegar às bases, ser assumido por mais dioceses, pastorais e movimentos, mas destaco muito o tema da ministerialidade, especialmente das mulheres nas comunidades, e o romper com o clericalismo para vencer o autoritarismo, trazendo a eclesiologia do serviço na missão, o olhar para os pobres e para as periferias. Isso, para nós, foi o ponto forte. Depois, a característica da América Latina trouxe o rosto dos pobres, a alegria e a inculturação.
Talvez um dos verbos mais repetidos durante o processo sinodal seja “escutar”. 

O que você diria sobre isso? A Igreja tem ouvido a todos?

Escutar é uma arte que muitas vezes não fomos ensinados a exercer, mas, como você disse, foi a palavra e a experiência vivenciada no Sínodo, por isso disse anteriormente: mesmo aqueles/as que não tinham o costume de escutar durante o Sínodo tiveram de vivenciar essa experiência, e de uma forma orante. Penso que, quando a Igreja fala em ter a centralidade em Jesus, uma das coisas para mim que fica muito forte é que Jesus escutava as pessoas, os sentimentos. Hoje a Igreja precisa recuperar essa arte da escuta, pois fala, escreve muitos livros e escuta pouco as periferias. Lembro que, durante o Sínodo, dei um dos primeiros depoimentos sobre o que foi minha experiência de escuta. Estive com mulheres em situação de vulnerabilidade, presos, povo de rua e catadores, e a primeira coisa que eles falavam era: que bom que a Igreja, através do papa, quer nos escutar, porque muitas vezes chegamos perto da Igreja e logo nos afastam, não querem nos escutar, achando que vamos somente pedir, mas muitas vezes vamos ali para buscar ajuda, apoio, precisamos que alguém nos escute. Creio que essa é a realidade de muitos jovens, famílias. Já levamos tudo pronto, como se soubéssemos da realidade do que eles vivem. Trabalho com muita gente de periferia e hoje sinto que, se não abrirmos os ouvidos e tirarmos um tempo para escutar o povo, não teremos pessoas em nossas igrejas, especialmente os pobres, que são os menos ouvidos em muitos lugares. E creio que grande parte disso é justamente este modelo de Igreja que estamos vivendo ou fortalecendo hoje: uma Igreja centrada na pessoa do padre. Clericalismo não combina com a sinodalidade. São antagônicos. E o clericalismo reforça o autoritarismo, que não é a autoridade de que Jesus fala, não é o serviço da missão. É manutenção. Isso foi trazido durante a Assembleia Sinodal, e temos visto esse medo que muitos têm da Igreja sinodal e do que o papa Francisco propõe. Porque querem viver uma estrutura ou uma eclesiologia que é da autorreferencialidade da Igreja, e o papa Francisco retoma a eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II [1962-1965], Igreja povo de Deus.

No contexto eclesial, o papa Francisco tem insistido em uma Igreja aberta, acolhedora, uma Igreja “pronto-socorro”, que se aproxime, tenha compaixão e cuide de todos. Você considera que, no desenvolvimento do Sínodo, há sintonia entre o que o papa sugere e a pastoral nas dioceses?

Não quero generalizar, porque temos bispos e padres comprometidos com essa eclesiologia que o papa Francisco nos convida a assumir, mas ainda temos mais resistência e o não assumir do que o assumir. Inclusive por parte de um clero mais jovem, que não vivenciou essa experiência da Igreja da comunidade, encarnada na base, nas periferias, a Igreja do avental. Vejo que, nas nossas dioceses, ainda não entramos nessa sintonia, e o problema é que muitas vezes o laicato ainda não tem autonomia nos espaços, tudo depende da permissão do padre; e se o padre não convida, não convoca, dependendo do leigo, ele não faz. Destaco uma fala do papa Francisco, quando diz que não podemos ser hóspedes na Igreja, onde vamos recebendo o que queremos, pagamos e vamos embora. Se não houver uma motivação de todos e de todas, o documento-síntese vai ficar restrito a grupo mais elitizado que está ali ao redor do padre, do bispo ou nas coordenações. Precisamos fazer [acontecer] o processo na nossa Igreja e penso que agora é o momento de redescobrir Jesus em nossa vida, a partir do outro, dos mais sofridos, mas não somente para fazer assistencialismo e ficar em paz, e sim para a Igreja ser esse espaço de hospital que está ali junto daquela mãe, das comunidades atingidas pelos impactos ambientais, das mulheres que sofrem violência. Essa é a Igreja sinodal, com menos vestes, menos “eu” e mais o “nós”, menos tijolos e mais poeira e pó, menos placas de valores na sacristia e mais portas abertas para escutar. Se conseguirmos fazer isso, inclusive refletindo o relatório-síntese, poderemos chegar a essa sintonia.

O que você destacaria no sentido da esperança na Igreja? O que esperar agora
do processo sinodal?

Como sou uma mulher preta, pobre e do sertão, carrego esperança em tudo, pois toda a minha vida foi acreditar na esperança. E na vida eclesial não é diferente, porque somos o povo do Ressuscitado, senão estaríamos como os discípulos de Emaús; [é preciso] sempre acreditar no processo. Prefiro carregar a alegria de Maria Madalena: ele ressuscitou e vamos correndo anunciar. É lógico que não sou simplória em pensar que basta somente acreditar. É necessário ir, participar e fazer a diferença, ser perseguida, ser malvista, mas como não acreditar num Deus que está sempre presente? Vejo que todo o processo do Sínodo já é um exemplo de esperança. Olhe como o papa Francisco tem sofrido perseguição, não aceitação, ali dentro mesmo. Alguns dizendo que não reconheceriam o Sínodo como um sínodo dos bispos. Mas ele não foi para o embate. Ele convoca homens e mulheres de todas as raças e idades e faz a experiência, e ali tivemos muitos sinais de esperança. Pessoas dizendo que eram capazes de evangelizar não obstante sua deficiência – da qual não eram “portadoras”, só tinham a deficiência – e que a Igreja precisava ouvir outros iguais a elas. Outros segmentos se apresentaram para dizer que acreditavam na Igreja e na proposta do papa Francisco, porque era o desejo do Espírito Santo de Deus. Eu, ao ir para o Sínodo, recebi muitas críticas, também aqui na minha diocese, de grupos que diziam que uso anel de tucum, que sou comunista, que estou defendendo o papa etc. Num primeiro momento, não tem como [isso] não mexer com o [estado] emocional; mas cresci numa sociedade onde recebi mais “não” do que “sim”, [mais] palavras como “você não pode” do que palavras de incentivo – “vá e faça” –, então eu soube aproveitar muito as poucas vezes em que ouvi palavras de incentivo, e isso é minha realidade até hoje. E estar à frente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil, organismo da Igreja no Brasil, é uma honra, e penso que nós, leigas e leigos, precisamos carregar essa espiritualidade da corresponsabilidade, do diálogo e da comunhão. Comunhão não no sentido de abaixar a cabeça, mas no sentido de que [aquele que] nos motiva a estar numa pastoral, num organismo ou na Igreja é Jesus Cristo, e é por ele e com ele que precisamos assumir o projeto de defesa da vida, da cultura de paz e da Igreja onde todos somos vistos, ouvidos e temos o direito de apontar decisão. O processo sinodal é retomar o caminhar de Jesus, que já convocava e caminhava junto. Para vivenciá-lo hoje, será preciso um processo de conversão, uma tarefa difícil até por conta do modelo de eclesiologia que estamos vivenciando agora, muito intimista. Mas na Igreja sinodal [isso] é possível acontecer, desde que cada um dê sua contribuição – desde teólogos/as, estudiosos, leigas, leigos, bispos, padres, diáconos –, abrindo-nos a esse processo de contribuir nessa experiência de fé. Depois, tudo que é novo gera medo, mas o medo, neste caso, tem de ser de reencantar, redescobrir esse jeito e vivenciá-lo nos pequenos espaços onde estou e atuo.

Sônia Gomes de Oliveira**é cristã leiga da arquidiocese de Montes Claros-MG. Assistente social na Legião de Recuperação e Assistência – LAR, onde atende grupos urbanos e rurais da região norte de Minas. Presidente do Conselho Nacional do Laicato no Brasil e animadora popular do coletivo de mulheres da periferia. E-mail: negasonia@gmail.com

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