Pe. João Medeiros Filho Arquidiocese de Natal |
A endogamia no Seridó
No Seridó potiguar, ouve-se frequentemente a expressão: “Aqui, quem não é parente, mora em frente.” Originalmente, a frase remetia à endogamia, ou seja, ao casamento de aparentados, consanguíneos geneticamente semelhantes. Em artigos anteriores, referi-me a determinados traços culturais flamengo-batavos nas tradições seridoenses. Por exemplo, o matrimônio entre parentes próximos, que ainda perdura. Tal tipo de união é um costume milenar, característico da civilização hebraica. Existia na península ibérica, disseminando-se com a colonização neerlandesa (predominantemente judaica) em alguns estados nordestinos. Assim, arraigou-se nos sertões do Seridó. Na Bíblia há recomendações para se contrair matrimônio no interior do clã. Dever-se-ia procurar um cônjuge entre os parentes da mesma linhagem. No Antigo Testamento, verifica-se a situação típica de Abraão, ao desposar Sara (Gn 20, 12).
A endogamia visa a preservar a
identidade antropológica-cultural e impedir a dispersão dos bens familiares. O
povo hebreu procurava também garantir a pureza de sua crença e o culto a Javé,
rejeitando núpcias com pessoas praticantes de religiões politeístas. Aliado a
esses motivos está o aspecto econômico-financeiro. Nessa direção caminha a Lei
do Levirato, no Antigo Testamento. Ela determinava ao Povo da Antiga Aliança
que a viúva sem filhos deveria se casar novamente com um cunhado. A este
caberia dar um herdeiro masculino ao irmão falecido. Desse modo, o seu nome não
desapareceria e conservaria a fortuna do casal. A importância e o objetivo
desta lei (cf. Dt 25, 5-10; Gn 38, 8) residem não só na manutenção da linhagem
familiar, mas também do patrimônio material.
O Seridó potiguar,
tendo recebido forte influência dos Países Baixos, ficou marcado pela
endogamia. Prevalecia a firme intenção de proteger o sangue, a índole, a
religião, as tradições do grupo e os bens da família. Esse dado de cunho semita
vige até os dias atuais. Após o fim do domínio holandês, houve certo cuidado,
por parte dos tradicionais troncos seridoenses, de evitar que o sangue
indígena, afro, judaico e o protestantismo pudessem atingir o DNA da
aristocracia rural católica, de ascendência e cultura lusitana. Assim,
evitar-se-ia a divisão das posses, mantendo-se a integridade patrimonial da
família, incluindo sua religião. “Não podemos permitir que forasteiros levem
nossas filhas e terras, maculando nossa religiosidade e crença”, dissera o
patriarca Tomás de Araújo Pereira a seu neto sacerdote, pároco do Acari. Esta
assertiva é uma apologia típica do vínculo endogâmico. Dom José Adelino Dantas,
segundo bispo de Caicó, trouxe com seus escritos um substancial contributo a
esse tema.
Como secretário do
bispado caicoense e chanceler da cúria, acompanhei durante mais de uma década
os processos matrimoniais, enviados à autoridade diocesana para obtenção da
dispensa do impedimento de consanguinidade. Este ainda está previsto no cânon
1091 § 1 do Código de Direito Canônico em vigor. Nesse período de observação,
verifiquei que as uniões entre consanguíneos se mantiveram num patamar de um
terço dos casamentos religiosos católicos. As dispensas de impedimento
matrimonial por consanguinidade ultrapassavam trezentas solicitações anuais.
Monsenhor Walfredo Gurgel, doutor em Direito Eclesiástico, vigário geral do
bispado, de 1941 a 1971, procurou sistematizar os argumentos para a solicitação
da licença canônica ao bispado. Entretanto, na justificativa dos requerimentos
apresentados, permaneciam de forma persistente as razões que expressam a marca
da endogamia.
Na ciência médica,
a temática suscita questionamentos no tocante a eventuais problemas de saúde,
oriundos de tais matrimônios. A outros fatores genéticos, junta-se uma doença
rara, presente no Seridó potiguar, denominada Síndrome de Berardinelli-Seip –
LCG. Naquela região norte-rio-grandense, constata-se uma incidência dessa morbidade,
quatorze vezes maior que a média mundial registrada. Os municípios mais
afetados são Timbaúba dos Batistas, Carnaúba dos Dantas e Parelhas.
Pesquisadores da UFRN, em alentado estudo, verificaram a existência da referida
doença em dezenove municípios potiguares, inclusive na região metropolitana de
Natal. Conforme achados de estudiosos, poderia concorrer para isso a endogamia
de seus ancestrais. Atualmente, a Igreja dispensa o impedimento de
consanguinidade com maior cautela. No entanto, conserva a tradição bíblica de
abençoar casamentos endogâmicos, lembrando as palavras do apóstolo Paulo: “Que
o vosso amor cresça também em discernimento” (Ef 5, 32).